“Conta-se que numa cidade do interior um grupo de pessoas se divertia com o idiota da aldeia, um pobre coitado, de pouca inteligência que vivia de pequenos bicos e esmolas.
Diariamente eles chamavam o idiota ao bar onde se reuniam e ofereciam a ele a escolha entre duas moedas: uma grande de 400 réis e outra menor, de 2.000 réis.
Ele sempre escolhia a maior e menos valiosa, o que era motivo de risos para todos.
Certo dia, um dos membros do grupo chamou-o e lhe perguntou se ainda não havia percebido que a moeda maior valia menos.
– Eu sei - respondeu o tolo assim: – Ela vale cinco vezes menos, mas no dia que eu escolher a outra, a brincadeira acaba e não vou mais ganhar minha moeda.”
Diariamente eles chamavam o idiota ao bar onde se reuniam e ofereciam a ele a escolha entre duas moedas: uma grande de 400 réis e outra menor, de 2.000 réis.
Ele sempre escolhia a maior e menos valiosa, o que era motivo de risos para todos.
Certo dia, um dos membros do grupo chamou-o e lhe perguntou se ainda não havia percebido que a moeda maior valia menos.
– Eu sei - respondeu o tolo assim: – Ela vale cinco vezes menos, mas no dia que eu escolher a outra, a brincadeira acaba e não vou mais ganhar minha moeda.”
A história acima é antiga, e não se sabe quem é seu autor. Porém, quem foi contemporâneo do tipo popular ararense conhecido como Tonico Riguidão, que vivera em meados do século passado, poderia ao lê-la pensar que se tratasse de mais uma das cômicas histórias que ele estrelara.
Este curioso sujeito, assim como o Preto Salomé, também costumava carregar um porrete de madeira consigo, mas, ao contrário deste, usava-o como um instrumento musical - para ser mais preciso, como um violão!... Nisto, lembrava o tipo popular Adão Soares citado no livro História de Uberaba (1974) de José Mendonça, que possuía instrumento igual e de igual finalidade. Na ilustração, o Tonico Riguidão em pintura de Juca Quintaes, ano 1972.
Era comum vê-lo encostado num poste de uma esquina qualquer, com seu instrumento nas mãos do qual nunca se separava. E ali, entretido consigo mesmo, dedilhava maquinalmente as cordas imaginárias de seu rústico instrumento. O escritor Emílio Wolff, que teve a oportunidade de presenciá-lo numa destas horas, escreveu: “(...) na posição de viola, como quem afina: Dim, dliii, dliii, para depois fingir que toca e canta: Reguidão, dão, dão...”. Era um tipo louco, mas não louco à ponto de não saber o que fazia – o Tonico Riguidão era espertíssimo, como se verá.
Era um tipo louco, mas não louco à ponto de não saber o que fazia — o Tonico Riguidão era espertíssimo, como se verá. Chapéu velho quebrado à esquerda, rosto vincado pelos anos, os olhos empapuçados, bigode e cavanhaque à moda caipira, lábios porém com inapagável expressão irônica, jamais era encontrado sem seu estimado “violão”. Sua voz estranha, deturpada pela vida incerta que levava, era coro dissonante em meio as famosos seresteiros que alegravam as ruas daquele tempo. Não precisava ser instado para cantar, pois cantava sem qualquer cerimônia – seja para afugentar alguma tristeza, seja para festejar a alegria em que se encontrava. Na verdade, tudo era motivo para cantorias para o Tonico Riguidão, e o dedilhar vago e abstrato de seu cajado era o que tudo o que lhe bastava para se realizar em seus anseios boêmios, ainda que cantarolasse sozinho.
Cardoso Silva, que também o conheceu, traçou umas rápidas linhas, destacando as proezas burlescas do esperto “malandro”:
“(..) era malandro. Nunca mais tive noticias dele. Tapeava meio mundo pra conseguir prato de comida e dinheiro pra cachaça. Era andarilho. Amanhecia em Leme e entardecia em Araras. Não era bem negro. Creio que de tanto sol que tomara, ficou vermelho. Um vermelho indígena. O apelido era uma delícia: ‘Tonico Riguidão’. Por quê? Tinha a mania de estender aos braços o cajado tosco, a imitar um violão, e, cantarolava, gesticulando com as mãos como se executasse o instrumento-alma do Brasil, a fazer: ‘Riguidão’, dão, dão... Riguidão, dão, dão!’ Tonico Riguidão’ tinha o delírio episódico das distâncias. Era uma espécie de embaixador de todas as caravanas possíveis. Como andava! Pra mim, há-de continuar andando por esse vasta mundo sem termo!”
Como numa versão humana da cigarra - a da parábola da cigarra e a formiga -, mas uma cigarra mais esperta, diziam que o homem não gostava de trabalhar, mas tão somente em levar vida de andarilho e cantar e dedilhar em seu tôsco instrumento, e era justamente nisto que residia a sua esperteza. No desenho ao lado, de autoria do Emílio Wolff, o Tonico com seu inseparável “violão”.
Já à primeira vista, lia-se na sua fisionomia o passaporte de andarilho, o selo de forasteiro que não para em lugar algum, os caçados surrados e a pele cozida de muitas insolações. Todos sabiam das suas condenáveis manias de enganar as pessoas, mas perdoavam-no uma vez que os meios que usava para conseguir o que queria sempre acabavam despertando o riso de todos. E assim vivia, seja pedindo um prato de comida aqui, seja implorando um trago de pinga ali, ou mesmo se oferecendo para um serviço braçal numa casa qualquer - era quando as pessoas começavam a desconfiar que ele estava prestes a aprontar alguma, afinal, o homem não era mesmo chegado num batente!... Não há registros de que freqüentasse ambientes baixos e era amigos de pagodes e serestas, mesmo porque não tocava instrumento algum.
Além de dedilhar em seu porrete, gostava também de imitar trens fazendo manobras, manobras estas que passaram a ser sua marca registrada. Nestas horas, chamava deveras a atenção de quem quer que fosse ? paravam para ver; riam; apupavam; descriam; meneavam a cabeça em desaprovação... Entretido consigo mesmo, fazia todos os ruídos e papéis possíveis dos envolvidos com o cotidiano ferroviário: o chefe do trem, o foguista, o maquinista, o guarda freios etc. E lá ia ele em seu particular espetáculo: corria, diminuía a marcha, avançava um pouco, aumentava o ritmo, armava os braços e antebraços em cotovelo angulado, e movia-os girando para frente e para trás como as alavancas que impulsionam as rodas das locomotivas. Ao mesmo tempo, toda aquela “sonoplastia” de alguém que só pode ter ficado observando e mentalizando por horas a fio as manobras dos trens... E a boca imitando os sons correspondentes de partida, o apito do chefe do trem, o resfolegar, o chiar entre lábios das descargas de vapor; freava... tchi-tchi, tchi-tchiii..., e em seguida crack da batida dos vagões engatados por ocasião da frenagem... E o show devia continuar... o ato de jogar a lenha na fornalha; puxava a corda do apito e novamente apitava, outra partida, tocava a máquina para a frente à toda brida, levantava o braço; mãos em punho puxava as alavancas... Tudo isto acompanhando os gestos e mais gestos e o escambau! Partia enfim, avançava e se ia, às vezes em ritmo frenético como um trem descendo serra; depois, a subida, o resfolegar lento... O ápice das manobras era quando o trem virava numa curva, uma surpresa...
Contemporâneos seus ainda vivos (2013), mantém-se fiéis à tradição, não ocorrendo a menor discrepância entre seus relatos à respeito destas suas curiosas características. Os episódios que se narram sobre as coisas que aprontou não divergem absolutamente da personalidade que ele ostentava — armava peças dignas de um grande comediante. Por outro lado, algumas pessoas consultadas que o conheceram, e até viram cumprindo sua sina de desajustado, nada acrescentaram.
Mas acontece que o Tonico se viu envolvido em diversos causos engraçados na cidade, e chegou mesmo a armar situações dignas de um grande comediante, e nunca será demais relembrar uma delas, história clássica, recolhida pelo Emilio Wolff, que, por sinal, nada fica a dever à história da introdução deste capítulo, a do idiota esperto e as moedas:
Contemporâneos seus ainda vivos (2013), mantém-se fiéis à tradição, não ocorrendo a menor discrepância entre seus relatos à respeito destas suas curiosas características. Os episódios que se narram sobre as coisas que aprontou não divergem absolutamente da personalidade que ele ostentava — armava peças dignas de um grande comediante. Por outro lado, algumas pessoas consultadas que o conheceram, e até viram cumprindo sua sina de desajustado, nada acrescentaram.
Mas acontece que o Tonico se viu envolvido em diversos causos engraçados na cidade, e chegou mesmo a armar situações dignas de um grande comediante, e nunca será demais relembrar uma delas, história clássica, recolhida pelo Emilio Wolff, que, por sinal, nada fica a dever à história da introdução deste capítulo, a do idiota esperto e as moedas:
“Certa ocasião, passando em frente da casa do Juiz de Direito, viu descarregarem a lenha de um carroção.
Aproximou-se e disse ao Juiz:
– Dotô, qué que eu recolho a lenha?
– Pois não, respondeu o Juiz.
– Mais, Dotô, eu ainda não comi e estou com fome. Saco vazio não para em pé.
O Juiz mandou-o entrar e dar comida.
Tonico saiu para rua, viu o montão de lenha e foi logo dizendo:
– Seu Dotô... Saco vazio não pára em pé, mas saco cheio não dobra. Dotô, enquanto o estango fais digestão, vô mostrá como o trem fais manobra.
– Como? perguntou o Juiz.
– Olha Dotô. É assim. E imitou um apito prolongado, movimentou o braço como pistão de máquina a soltar vapor por todos os lados, andou para frente e para trás diversas vezes, imitou manobra. E depois disse: Olha, Dotô, agora ele vai virar na curva. Dobrou a esquina e até hoje não apareceu para recolher a lenha.”
À esta altura, fica claro que o fato de agir assim, ludibriando inocentemente as pessoas, era uma estratégia sabiamente utilizada para obter dividendos. Uma coisa é certa: o Tonico Riguidão podia ser louco, mas de esperteza, ah, disso ele não carecia não!...
Como sói à estes tipos, ninguém sabia seu nome de batismo, de que família era e de onde era natural. Também nada se escreveu sobre o destino que teve, assim como nada se revelou sobre o que empreendera nas terras remotas - quiçá do vício e da perdição -, por onde errara em seus enigmáticos sumiços. Sim, é provável que se perdera mesmo, devido a essa vida errante de que falara Cardoso Silva, e, assim, a esperta cigarra humana se fora “andando por esse vasto mundo sem termo”, partindo em seu trem particular... e sumindo para nunca mais voltar ...
* Capítulo de um livro meu em andamento, "Tipos populares de rua da Araras antiga", onde disseco 36 tipos que viveram no século 20.
BIBLIOGRAFIA: 4 fontes. Consultar autor.