segunda-feira, 5 de novembro de 2018

1918-2018: OS 110 ANOS DA EPIDEMIA DE GRIPE ESPANHOLA EM ARARAS.

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Araras foi também uma das inúmeras cidades brasileiras que, em 1918, não passou incólume ao surto da terrível pandemia, a chamada gripe espanhola, ou vírus Influenza — “o grande mal do século XX”. Não se sabe ao certo a sua origem geográfica, mas a imprensa espanhola, durante a I Guerra, anunciava que civis estavam adoecendo e morrendo em números alarmantes; depois, em março de 1918, a doença foi observada nos EUA. Os primeiros casos conhecidos da gripe na Europa ocorreram durante a guerra, em abril, atacando tropas francesas, britânicas e americanas estacionadas em portos de embarque na França.

Hospital de campanha nos EUA durante a pandemia de gripe de 1918 

A epidemia matou muito mais que a própria Primeira Guerra Mundial, que terminou em novembro de 1918 com um saldo estimado em 16 milhões de vítimas. Segundo afirmara o Ministro da Saúde Britânico na época, essa epidemia ocupou "nada menos que o terceiro lugar, talvez o segundo, na escala das grandes pragas" de todas as registradas pela História, tendo como rivais a do Reinado de Justiniano e a “peste Negra” do século XIV. Esta gripe foi excepcional em termos de disseminação e gravidade, e acredita-se que até 5% da população mundial tenha sido infectada, falecendo em todo o planeta entre 20 e 40 milhões de pessoas; porém, outras estatísticas elevam o número a 100 milhões.

Rodrigues Alves
Depois do surto ocorrido na Europa, ele propagou-se pelo Brasil através dos navios de passageiros que aqui desembarcavam trazendo imigrantes. No Rio de Janeiro a gripe aportou em junho a bordo do navio Demerara, que teve a sua tripulação atingida pela epidemia em Dakar. No princípio, umas poucas mortes foram registradas, mas em outubro 300 pessoas pereciam por dia na cidade. Ocorreram no País 35 mil casos, entre eles o próprio Presidente eleito, o carioca Rodrigues Alves (1848-1919). No Estado de São Paulo, o número de vítimas chegou a cerca de 8 mil casos. Em Araras que, por sinal, tinha 8 mil habitantes na época, houve mais de uma centena de casos, registrados tanto na zona urbana quanto na rural. Nunca, em época alguma, o Dr. Narciso Gomes, o padre Alarico Zacharias e Luiz Tozzato, o zelador do Cemitério, se viram diante de tantos doentes e falecidos num espaço de tempo tão curto.

Os atacados pela gripe, geralmente eram jovens entre 20 e 40 anos, de modo que por nunca terem sido expostos à vírus semelhantes, não tinham nenhuma imunidade contra o da Influenza, no que sofriam bem mais que os atacados de uma gripe normal: os pulmões, congestionados e enrijecidos, tornavam o ato de respirar numa tarefa quase impossível. As infecções evoluíam rapidamente, e as pessoas morriam em poucos dias, às vezes, em questão de horas, logo depois do aparecimento dos primeiros sintomas, no que eram sufocadas pelos fluídos que tomavam conta dos pulmões. De cada seis ou sete casos, um degenerava em pneumonia tão grave que o paciente só teria duas possibilidades, em três, de escapar. O que tornou essa linhagem tão mortal era um mistério médico, até que, em 2006, cientistas norte-americanos desenvolveram técnicas que permitiram resgatar e ressuscitar os genes do vírus de 1918 de tecidos de uma vítima da época cujo corpo fora encontrado congelado em neve. Análises desses genes e de proteínas codificadas revelaram características do vírus que poderia suprimir as defesas do corpo e provocar uma reação imune violenta nas vítimas, levando à morte. Os cientistas concluíram que, embora o vírus da gripe espanhola tivesse de fato ‘nascido’ pouco antes de 1918, ele surgiu quando um vírus da gripe humana – que já naquela altura, circulava entre a raça humana entre dez a 15 anos – ‘capturou’ um gene de gripe aviária. Não foi um vírus das aves que ‘saltou’ inteirinho das aves para os humanos nem resultou de uma mistura com um vírus suíno.

Relatos da época dão conta de que os corpos ficavam tão arroxeados que era difícil distinguir um cadáver de um branco do de um negro. Sabendo-se hoje da ligação com o vírus da gripe, não deixa de ser curioso o que este site relatou:
                            
“Os médicos, também alarmados, não sabiam o que receitar e indicavam canja de galinha. O resultado foram saques aos armazéns atrás de frangos. Os jornais afirmavam que o tratamento deveria ser feito à base de pinga com limão ou uísque com gengibre.”

Em carta descoberta e publicada no

"desenvolvem rapidamente o tipo mais viscoso de pneumonia jamais visto. Duas horas após darem entrada [no hospital], têm manchas castanho-avermelhadas nas maçãs do rosto e algumas horas mais tarde pode-se começar a ver a cianose estendendo-se por toda a face a partir das orelhas, até que se torna difícil distinguir o homem negro do branco. A morte chega em poucas horas e acontece simplesmente como uma falta de ar, até que morrem sufocados. É horrível. Pode-se ficar olhando um, dois ou 20 homens morrerem, mas ver esses pobres-diabos sendo abatidos como moscas deixa qualquer um exasperado”.

Dr. Narciso Gomes
Foi um ano muito difícil para a população da região que parecia viver anos de pragas e maldições bíblicas. Primeiro, foram as pragas de gafanhotos que surgiram vindos do Sul. Registros feitos em Mogi-Guaçu citam que uma nuvem imensa e compacta, com alguns quilômetros de largura, cortou o céu da cidade durante horas, seguindo em direção de Minas Gerais. Em Araras houve uma passagem em setembro de 1917 e outra em fevereiro de 1918. No Rio Grande do Sul (Panambi e Passo Fundo) já havia registros em 1906 e 1907, em época de forte seca. Em Araras os registros mais antigos datam de setembro, outubro e novembro de 1906 e maio de 1909. Como não se bastasse, meses antes do surto da gripe e depois da praga dos gafanhotos, ocorrera a grande geada dos dias 25 e 26 de junho de 1918, quando os termômetros chegaram a registrar 4 graus negativos comprometendo toda a lavoura cafeeira, destruindo-se 4 milhões de pé de café.

O Prefeito Coronel André Ulson Júnior, junto do Doutor Luiz Narciso Gomes, então Presidente da Câmara e Inspetor de Higiene Municipal, tomaram medidas preventivas, dentre elas, destacam-se algumas curiosas recomendações profiláticas:

— “Todas as pessoas que tiverem sido afetadas de gripe, deverão conservar-se em suas casas. Não devem cuspir ou escarrar nas ruas e calçadas, devendo fazê-lo somente em escarradeiras ou vasos previamente munidos de uma solução de sublimado que a Prefeitura fornece gratuitamente.”
— “As pessoas ainda não afetadas devem evitar as que foram e que tenham ainda tosse; bem como enquanto durar a epidemia, banir o modo comum de saudação por aperto de mão.”
— “Devem respirar pelas narinas e não pela boca.”
— “Afim de preservar aquelas de possível contaminação, poderão untar a mucosa, por meio de um pequeno tampão de algodão, com a seguinte pomada: ácido bórico 2 gramas, vaselina 30 gramas, mentol 10 centigramas.”

Prefeito André Ulson Junior.
Foi também colocado um guarda em cada casa que tivesse um doente, de modo que se evitava assim

Pelo que se depreende ─ certamente para evitar contágios ─, nenhum dos doentes foi transferido para a Santa Casa da Misericórdia, que na época se situava num prédio na então praça Mário Tavares, entre a igreja Matriz e a atual Casa da Cultura.



A Santa Casa da Misericórdia, exatos 10 anos antes da febre amarela.


A Santa Cruz foi uma das ruas bastante afetadas pelo surto, na época, uma rua ainda de terra batida, com casas com esgoto à céu aberto e latrinas, bem como locais de criações de animais como porcos e aves, enfim, lugares propícios ao aparecimento de ratos e a famigerada peste bubônica, bem como de mosquitos, devido à sua proximidade com o ribeirão das Furnas e seus brejais adjacentes, mas não se sabe se estas condições colaboraram para o avanço da epidemia. De todo modo, já no ano anterior ao surto, havia em Araras um rigoroso serviço de inspeção de quintais. Em maio de 1917, foram inspecionados os quintais das 71 residências existentes ao longo desta rua. O fiscal municipal era o senhor José da Luz, que notificou os proprietários de cinco casas, e “foram intimados a fazer os serviços e limpezas necessárias, adotando certas medidas higiênicas, indispensáveis”.

A rua e a capela de Santa Cruz, exatas três décadas após o surto de febre amarela

No início de novembro do ano seguinte, Araras tinha suas primeiras vítimas de febre amarela: o jornal Tribuna do Povo noticiava no dia 3 que houve uma vítima na rua Santa Cruz, no “prédio no 17”; no dia 10, na casa de no 29, era notificada mais uma vítima; na no 55, duas vítimas, e na de no 89 outras duas. Nesta mesma data iniciava-se a distribuição de mantimentos às vítimas pobres. Para 60 pessoas necessitadas que não podiam trabalhar devido à doença, foram distribuídos: café, chá, açúcar, leite, pão, biscoitos, arroz, feijão, fubá, farinha de mandioca, maisena, sal, toucinho, sabão e querosene, sendo que na rua Santa Cruz, foram contempladas três pessoas da casa no 14, e duas pessoas da casa no 17. Em 24 de novembro surgiam novos casos na mesma rua: duas vítimas na casa no 5; um na casa no 13; uma na no 23; dois na no 55 e uma na no 57. No dia 8 do mês seguinte, mais quatro surgiam na casa no 6. No dia 15, outra em prédio não citado, e no dia 29, nova outra vítima na casa no 38. Como os dados foram colhidos pelo citado jornal e inexistem os exemplares do mês janeiro, não se soube o que ocorreu neste mês, mas no início de fevereiro não mais se noticiava o surto. No final, computou-se que morreram 31 pessoas na cidade.

No sopé, a rua Sta Cruz, o casario e quintais, e a várzea do ribeirão das Furnas. Déc. 1940

A semelhança existente entre o vírus da gripe espanhola e o atual vírus causador da gripe das aves na Europa e da Ásia é impressionante, e sugere que foram necessárias mutações relativamente pequenas para que um vírus aviário como o de 1918 passasse a infectar humanos. Assim, a mutação do vírus da gripe comum de 1918 é semelhante à que surgiu nos casos da gripe aviária (H5N1) ou gripe suína (H1N1). Nestes casos, como não era fácil identificar o organismo que estava causando a doença, não era possível encontrar um tratamento eficaz, tornando a doença fatal na maior parte dos casos.

Sobre a pequena Araras desse ano crítico, o senhor Luiz Rubini, nascido em 1909, comentou em entrevista ao Opinião Jornal em fevereiro de 2003:

“Viemos para a cidade em 1918. A cidade daquele tempo era muito ruim. Não tinha calçamento, rede de esgoto, privada patente. Quando a gente vinha pra escola o cheiro das fossas se espalhava pela cidade. Ela começou a melhorar quando o Zurita foi prefeito”