quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

JIMI HENDRIX, O "DOMADOR DE RAIOS": O ESTILO E A ARTE DA IMPROVISAÇÃO

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O guitarrista Faiska - músico que admiro, que dispensa apresentações e é mestre em seu instrumento -, em recente entrevista à revista Guitar Player (nov. 2013), declarou num determinado trecho que "Ninguém improvisa o tempo todo. Solos inéditos, em minha opinião, não existem. Sempre nos repetimos e isso é que faz o estilo de cada um." Discordo da opinião do Faiska, e acho até contraditória sua colocação, pois subentende-se que quem está improvisando está criando coisas novas, inéditas...


Há pelo menos um músico, ao qual, pela sua própria genialidade, a opinião do Faiska não pode ser aplicada: nada mais nada menos que Jimi Hendrix. No meu entender e conhecimento, após décadas e décadas ouvindo e dissecando o estilo e a genialidade de Jimi, acredito que existem sim músicos que fazem solos inéditos, e que nem sempre os músicos se repetem improvisando. Mas acontece que o jazz, p. ex., está cheio deles. A verdadeira repetição só se dá à quem execute um solo através de uma partitura, e, do contrário, o que um guitarrista faz no máximo é repetir os truques e licks que aprendera, fazendo variações na escala. Na verdade, não esqueçamos que mesmo se executando uma música através de uma partitura, há execuções boas e ruins - a inspiração e interpretação contam muito -, e, p. ex., mesmo a versão de um maestro e sua orquestra para um famoso tema clássico pode ser superior à de outro maestro.

Quero afirmar com isso, que o Jimi Hendrix é um caso à parte, pois houveram coisas incríveis que ele fez que só se realizaram no momento da interpretação. Hendrix não planejava os solos, mas, com certa frequência, criava coisas na hora como que tirando truques inéditos da manga ou da cartola - era imprevisível, ao contrário da maioria dos melhores guitarristas de rock. Raros são os guitarristas sem vícios e clichês, que improvisam e criam coisas do nada - a maioria, ouvindo-os improvisar, a gente quase advinha o próximo passo que eles irão dar, fato que não se dá com o Hendrix! Ouvir Jimi improvisando era ouvir um músico inspirado e criativo inventando coisas jamais ouvidas - a coisa nascia ali, na hora, ao vivo! Há um termo em latim que define bem isto: Ex nulla re, ou seja, a criação de coisas a partir do nada.

O próprio engenheiro de som de Hendrix, o Eddie Kammer, definiu bem isso: "Sempre que ele fazia alguma coisa no estúdio - tocava uma guitarra ou usava um pedal - era um acontecimento. E eu ficava pensando: 'como vou fazer com que isso fique ainda melhor?'" Lembremos que um "acontecimento", por definição, é sempre uma coisa nova e inédita.

A pergunta que fica é: como é que ele poderia criar truques tão maravilhosos - verdadeiras joias da arte da improvisação -, e depois nunca mais repeti-los? Seria, antes que um desperdício, um enorme contra-senso. E convém não esquecer - o que é estranho -, que ele costumava gravar todas as  jams e shows que podia para ouvi-los depois e ver o que era aproveitável!...

No disco "The Genius of The Jimi Hendrix", lançado no Brasil em 1978, e com sessões de gravação feitas em 1966 (vídeo abaixo), pouco antes de ele ir para a Inglaterra, aos 4:50 minutos da canção "People, people", o Jimi faz um lick de blues tradicional, mas ao seu modo - de uma maneira inusitada e genial -, mas em tudo o que já ouvi dele depois - o que não é pouco -, ele nunca mais repetiu este lick desse modo! Ele foi utilizado em outros blues seus, mas nunca tocados dessa maneira.


"Peoples, Peoples" (1966)

Basta ouvir as várias versões de "Machine Gun" e "Hear My Train a Coming", e até mesmo (absurdo!) de "Little Wing", para constatar que Hendrix improvisava o tempo todo, mas sempre contava a mesma história de uma maneira diferente. Não há como negar que a versão de "Hear my Train..." do disco "Rainbow Bridges" (show em Berkeley, na California, no dia 30-5-1970), é fantástica e diferente de qualquer outra (veja o vídeo abaixo). A versão de "C# Blues - Bleeding Heart (People, People)", do disco "Experienced" (ver vídeo abaixo, trilha sonora do filme, de show no Albert Hall, Inglaterram 24-2-1969), é um caso à parte, uma versão onde ele faz coisas jamais feitas em outras versões, e muito provavelmente são as tais coisas inéditas que o Faiska não acredita... O desfecho da música é lírico, sutil e elegante, e não me recordo de ele finalizando um outro blues seu dessa maneira.



"Hear my Train a Coming"



"C# Blues - Bleeding Heart (People, People)"

Acredito que o solo mais violento, e um dos mais indecifráveis, que o Jimi fez em toda sua carreira, foi numa apresentação em um show no programa da cantora Lulu (a do "Ao Mestre com Carinho"), onde o Jimi destilou toda a sua raiva e violência após saber que a cantora havia depreciado o Cream com suas opiniões a respeito da banda. À partir dos 2:57 minutos da execução de "Voodoo Chile" (vídeo abaixo), não sei como, ele faz a guitarra rosnar e bufar agressivamente! - parece que ela vomita o som e o arremessa contra o ouvinte! Aliás, acho isto a coisa mais violenta jamais feita por um guitarrista de rock! Coloque em alto e bom som e tente entender o que ele fez, pois a câmera não mostra, infelizmente! Não estou falando em violência de solos tipo "Eruption" ou um solo ultra rápido do Malmsteen - a coisa é outra: ele "humaniza" o solo, ou melhor, a guitarra tem voz animal, orgânica e sentimentos de raiva! O trecho começa com um silvo ou assovio incomum numa guitarra, e depois descamba naquela agressividade toda, que deixa entrever toda a sua raiva ante o posicionamento infeliz da cantora. 

Outro ponto interessante deste show, foi em relação ao som do contrabaixo, que estava demais. E deve ter sido este timbre e potência de contrabaixo que, certa vez, embasbacou o guitarrista Larry Coryell, que assitia à um show da banda, quando afirmou que era o melhor som de contrabaixo que ele havia ouvido para esta linguagem!


E o mais incrível é que eu nunca mais vi ele fazendo isto do mesmo modo em outro solo durante toda sua carreira, porém, na canção "House Burning Down" (vídeo abaixo, ver aos 3:58 minutos), do disco "Eletric Ladyland", há outra variante desse truque que pode ser ouvida ao longo da música, mas não com o mesma violência com que foi empregada no show do programa da Lulu.


"House Burning Down"

Para fechar este texto com um exemplo primoroso da arte de Jimi Hendrix, como afirmar que a interpretação do Hino Nacional Norte-Americano em Woodstock foi uma repetição, se Jimi nunca improvisara esta canção daquele modo?! A versão pode ser julgada numa palavra: perfeita! Como dizer que alguém não faz coisas inéditas e se repete, usando tudo o que havia ao seu alcance para interpretar uma música? Além das cordas, alavanca, pedais e palheta, havia o pedestal do microfone, um anel ocasional, o cotovelo, os dentes e o genial uso controlado da microfonia?! "Star Spangled Banner", na versão de Woodstock, é - me permitam um neologismo - irrepetível, uma versão que músico algum conseguirá executar e interpretar como Jimi, que ele fez, acredito, coisas indecifráveis ali que só um gênio faria!

Enfim, amigos, a verdade nua e crua é que Hendrix era um improvisador por excelência, no que ele ultrapassava os limites da lógica. Em suma, ele era a própria definição do seu estilo em particular - tinha sua própria marca registrada sonora, e não foi à toa que a crítica de rock Ana Maria Bahiana criou uma excelente expressão para definir a maestria de Jimi: "Domador de Raios"!... 


"Star Spangled Banner" - Woodstock, 1969