Antes de mais nada, gostaria de dizer que, atualmente, existe o conceito de “paisagem sonora”, conceito com origem na palavra inglesa “soundscape”, e que se caracteriza pelo estudo e análise do universo sonoro que nos rodeia. Uma paisagem sonora é composta pelos diferentes sons que compõe um determinado ambiente, sejam esses sons de origem natural, humana, e mesmo industrial ou tecnológica. Deste conceito trata o ramo da ciência conhecido como a Biocústica, uma ciência multi-disciplinar que agrega a Biologia e a Acústica. Geralmente, refere-se à investigação da produção sonora, sua dispersão através de um meio elástico e sua recepção pelos animais, incluindo os humanos. Para trabalhar, ela registra os sons em mídia apropriada, como os gravadores ─ antes analógicos e hoje digitais ─ de tudo o que nos rodeia. Isto posto, eu fico imaginando se todos os ruídos e sons que foram ouvidos pelos privilegiados senhores listados abaixo em meio à pujante natureza selvagem brasileira de outrora houvessem sido gravados, que riqueza de sons, em alguns casos, sabe-se lá oriundos de quê ou emitidos por quem, ouviríamos hoje, certamente de muitos animais jamais vistos e ouvidos, e alguns até mesmos extintos.
Em um comentário publicado em julho de 2018 na revista Biotropica, um grupo de biólogos e ecólogos dos Estados Unidos, da Austrália, da Alemanha e do Brasil afirmaram:
“As gravações de paisagens sonoras fornecem um registro permanente de um determinado local em certo momento e contêm uma riqueza inestimável e insubstituível de informações.”
Quem quiser a se aventurarem no assunto, inclusive gravando esses sons, a publicação Pesquisa Fapesp (nº 281, jul. 2019), deu a dica:
"Os gravadores baratearam e os sistemas de armazenamento de dados melhoraram. Por essa razão, reforçam, deixar de coletar dados sonoros sobre os ecossistemas tropicais pode representar uma falta grave com as gerações futuras que poderiam se beneficiar de pesquisas em ecologia."
Nos textos seguintes, embora muitos dos sons ouvidos sejam identificados, sempre há um ou outro ruído estranho presente, ruído este que deixou seu ouvinte intrigado, curioso, e, às vezes, e até amedrontado, sem saber do que se tratava. Quem comentou com muita propriedade o que representa esta paixão pelos mistérios noturnos das selvas brasileiras, sentimento que, com certeza, é o mesmo entre todos os descritos nos textos reproduzidos abaixo, foi o ornitólogo Helmut Sick (1910-1991), em seu livro “Tukani - Entre os índios do Brasil Central" (1960), em expedição feita em 1948, onde ele diz:
“Eu lamentava cada hora que perdia dormindo. Era justamente de noite que a mata imensa nos falava com mais força de seus profundos mistérios."
O “Pai da moderna Geografia” nas matas amazônicas
Um dos primeiros, senão o primeiro a registrar ruídos noturnos e manifestações de animais à noite nas florestas do Novo Mundo foi Alexander von Humboldt (1769-1859), geógrafo, naturalista e explorador alemão, que foi impedido de pesquisar no Brasil porque foi tido como um espião. No entanto, durante sua expedição pelas Américas de 1799 a 1804, quando esteve na Venezuela, descendo o rio Orinoco, ouviu numa certa noite em meio à uma mata uma ruidosa manifestação de diversos animais, que ele descreveu seu famoso livro “Quadros da Natureza”:
“Nos últimos dias, havíamos descido dos estreitos vales da montanha e avistávamos agora, de quando em quando, ao luar, bem defronte de nós, e ao nosso lado, os píncaros de uma parte da serra da Mantiqueira, que, saindo de Minas, segue para o sul, por trás da serra do Mar. Os seus contornos azulados formavam um mágico fundo de cenário, no qual se alternavam matas e lugares descobertos. As altas árvores do mato, entre as quais transitávamos, estavam envoltas em sombras negras, e frequentes vezes ali ressoavam maravilhosos sons de vozes noturnas, nunca antes percebidas; tudo se combinava para transportar-nos a um raro, tanto quanto singular, estado de alma. A condução da tropa, à noite, exigia dupla atenção do tocador, a fim de que nenhum dos cargueiros se escondesse e ficasse atrás da mataria. “Eram mais de onze horas quando começou no bosque imediato um barulho tal que foi preciso renunciar em absoluto a dormir durante o resto da noite. Todo o mato ressoava com os gritos selvagens. Entre as numerosas vozes que tomavam parte neste concerto, não podiam distinguir os índios senão aquelas que depois de uma breve pausa começavam a deixar se ouvir sós. Eram os uivos guturais e monótonos dos aluatos; a voz queixosa e aflautada dos tities, e os roncos do macaco dorminhoco (Nyctipithecus trivirgatus), cuja descrição dei em primeiro lugar; os gritos entrecortados do grande tigre da América, do cuguardo ou leão sem juba, do pecari, da preguiça e de um enxame de periquitos, os de parraquas (Ortalida) e de outros galináceos. Quando avançavam os tigres até o limite do bosque, o nosso cão, que primeiro ladrava sem cessar, procurava, uivando, um asilo debaixo das nossas redes. Às vezes o rugido do tigre descia do alto das árvores; então era sempre acompanhado dos gritos agudos e lastimosos dos macacos, que pugnavam para escapar a esse novo perigo para eles. Se se perguntar aos índios o que é que produz, durante certas noites, esse tumulto contínuo, respondem, rindo, que os animais gostam de ver a lua iluminar a floresta e que festejam a lua cheia. Pela minha parte, pareceu-me que a cena provinha de um combate travado por casualidade e que se ia prolongando com encarniçamento sempre crescente. O jaguar persegue os pecaris e tapires; estes animais, estreitamente apertados uns contra os outros, quebram a paliçada de arbustos que põe obstáculo a sua fuga. Assustados com o ruídos, misturam os macacos, nas copas das árvores, os seus gritos ao dos grandes animais; despertam as famílias de aves pousadas em sociedade e assim, pouco a pouco se vai pondo em comoção toda a família animal. Uma experiência mais longa nos ensinou que não é sempre, a ‘celebração da lua cheia’ o que altera o sossego dos animais. Durante os violentos aguaceiros eram mais ruidosos os gritos; ou quando, no meio dos trovões, iluminava o Relâmpago ou interior da floresta.”
Viajante alemão se depara com a acusma na Serra da Mantiqueira em princípios do século XIX
A segunda referência mais antiga que encontrei sobre a acusma em livros brasileiros é de 1817, feita pelo viajante naturalista Carl Friedrich von Martius, que foi ouvida nas margens de uma mata aos pés da Serra da Mantiqueira, numa noite de luar. A região era o Vale do Paraíba, entre as cidades de Areias e Mogi das Cruzes.
“Nos últimos dias, havíamos descido dos estreitos vales da montanha e avistávamos agora, de quando em quando, ao luar, bem defronte de nós, e ao nosso lado, os píncaros de uma parte da serra da Mantiqueira, que, saindo de Minas, segue para o sul, por trás da serra do Mar. Os seus contornos azulados formavam um mágico fundo de cenário, no qual se alternavam matas e lugares descobertos. As altas árvores do mato, entre as quais transitávamos, estavam envoltas em sombras negras, e frequentes vezes ali ressoavam maravilhosos sons de vozes noturnas, nunca antes percebidas; tudo se combinava para transportar-nos a um raro, tanto quanto singular, estado de alma. A condução da tropa, à noite, exigia dupla atenção do tocador, a fim de que nenhum dos cargueiros se escondesse e ficasse atrás da mataria. ”
O escritor Visconde de Taunay (1843-1899), o mesmo que escreveu o best-seller “Inocência” (1871), faz alusão à acusma no livro “Céus e Terras do Brasil” (1882), que eu comprei num sebo
em São Paulo há décadas – é uma raridade que nunca mais foi reeditada, sequer
em e-books. Aliás, ele usa a passagem de onde foi extraído o trecho abaixo no primeiro capítulo deste romance. Taunay foi correspondente na Guerra do Paraguai quando atravessou os sertões do Mato Grosso entre 1864 e 1870, e o material que coletou para escrever esse livro veio dessas viagens solitárias. O texto:
“Mais raras, felizmente, são as trombas de ar em que se juntam a uma as vozes mais terríficas dos elementos revoltos, desde o estrondear da catadupa que se despenha, até o estampido do raio que fulmina.
E aquilo acomete de chofre e, quando passa deixa o caipira enregelado de medo, tremulo, estatelado, com os cabelos eriçados e as carnes arrepiadas; o caipira, sim, que o sertanejo às direitas, o sertanejo, que desde em criança explora o deserto em todos os sentidos e o cruza a toda hora do dia e da noite, nunca viu nem ouviu nada disso e, se conta aquelas tremendas histórias, é só para matar o tempo e rir-se intimamente dos companheiros de viagem, menos traquejados na carreira da vida”
Em parágrafos anteriores à este, que é mais específico sobre a acusma , ele comenta cenas noturnas que vale a pena transcrever por sua beleza e sensibilidade:
“Quanta melancolia baixa à terra com o cair da tarde! Parece que a solidão alarga os seus limites para se tornar acabrunhadora. Enegrece o solo; formam os matagais sombrios, maciços, e ao longe se desdobra tênue véu de um roxo uniforme e desmaiado, no qual, como linhas a meio apagadas, ressaltam os troncos de uma ou outra palmeira mais alterosa.
É a hora, em que se aperta de inexplicável receio o coração. Qualquer ruído nos causa sobressalto; ora o grito aflito da zabelê nas matas, ora as plangentes notas do bacurau a cruzar os ares. Freqüente é também amiudarem-se os pios angustiados de alguma perdiz, chamando ao ninho o companheiro extraviado, antes que a escuridão de todo lhe impossibilite a volta.”
E complementa o texto com uma conclusão surpreendente:
“Quem viaja atento às impressões intimas, estremece, mau grado seu, ao ouvir nesse momento de saudades o tanger de um sino muito, muito ao longe, ou o silvar distante de uma locomotiva impossível. São insetos ocultos na macega que trazem essa ilusão, por tal modo viva e perfeita que a imaginação, embora desabusada e prevenida, ergue o vôo e lá vai por estes mundos afora a doidejar e a criar mil fantasias.”
A acusma na poesia
O sensível “poeta da natureza” Fagundes Varella (1841-1875), escreveu na década de 1860 um texto para o jornal
O Diabo Coxo, em que mostra a atração que sentia por acusmas. Como gostasse muito de bater pernas solitariamente pela natureza – e andava muito –, panteísta que era, se sentia atraído pelos misteriosos sons da natureza brasileira. Num determinado trecho do longo texto, onde conversa com as árvores, as plantinhas e flores, e os animais, ele escreveu:
“Viver no descampado, ouvir à noite surgir do brejo, das moitas, dos montes, dos vales, mil vozes, mil cânticos: todos eles se casando numa harmonia indizível que parece dizer – Deus!”.
O mesmo tema foi usado por ele depois num poema homônimo que, apesar de longo, ele dá o humilde subtítulo de “Fragmentos”. O poeta e escritor Leonardo Fróes, indica-o como um dos dez melhores poemas do Brasil, poema este que faz parte do livro “Cantos do Ermo e da Cidade” (1869). Comentarei aqui algumas da belas passagens desse poema em que esse notável panteísta dialoga com os elementos da natureza, como as árvores, as flores, o rio, as vozes no espaço, a estrela Vésper e os espíritos na atmosfera.
Na quinta estrofe, talvez a mais bela passagem do poema, ele faz à natureza um pedido de esperança por melhores dias:
“Da natureza às múltiplas facetas
Tenho um plano pedido, onde traçada
Vejo nova existência; (...)”
E parece pedir uma existência no além:
(...) cair... mudar... deixar o asilo
De uma prisão de carnes e de misérias
Por um mundo ignoto! Aos ventos soltos
Desprender os andrajos derradeiros
De uma sórdida veste, e desnudado
Tiritar nos desertos do invisível! (...)”
Se fiando talvez nas ideias de seu mestre Willian Blake, poeta que enxergava o Universo num grão de areia, faz uma bela estrofe com as “Vozes do Espaço” dizendo a si:
“Somos a ideia, o sentimento, a essência
Da criação inteira; a íntima nota
De quanto brilha corre, canta e chora;
Somos o fluído eterno, que circula,
Envolve o globo, os seres, e penetra-se
De um infinito amor; somos a cítara
Onde o sopro de Deus roça inflamado
E sacode no espaço a paz dos homens
Num turbilhão de notas amorosas.”
E, com sua visão poética da acusma, pergunta:
“Quem o sentido revelar pudera
Desse rumor confuso, imenso e vago,
Que se eleva da terra, semelhante
Ao ressonar dos gênios adormecidos? (...)”
Depois, as árvores - “sócias de infância” - o interrogam porque trocara o “sossego do deserto” pelo “fulgor das salas dos palácios”. Em seguida, é vez das flores, indignadas por ele tê-las trocado pela “múmias sensuais que pejam as alcovas de sórdidas pocilgas”, e lamentam que se ele tivesse ficado, elas lhe contariam toda noite as “lendas de nosso reino”. Já o rio – o “soberano do val”, que lhe indicaria o melhor caminho na vida –, lhe adverte dizendo
“Que fizeste, infeliz! Gênio bendito,
Eu te devera encaminhar no mundo!
Quando, à tépida luz de amenas tardes
Cantavas, sobre as rochas inclinado,
Quantas promessas não te fiz! Que planos
Desvendei a teus olhos cintilantes! (...)
E desprezaste a virgem que eu fadei-te,
Pura, mais pura que as estrelas todas!
Cortaste o fio do dourado drama
Que, no silêncio místico das noite
Pensando em ti, tracei, esmando o espaço
De um imenso porvir! (...)”
Agora, a estrela Vésper lhe implora:
"E os vagalumes do deserto pasmam
À mansa luz que entorno sobre os campos.
Por que não vens inspirações pedir-me,
Sonhador de outras eras? (...)”
Espíritos na atmosfera conclamam sombras, espectros, lêmures, fantasmas, íris, fadas, ondinas e princesas para vir fazer ao poeta a “orgia da saudade”. Após, uma voz especial no espaço, que diz velar por ele, o incentiva:
“Cumpre teu fado nesse mundo ingrato:
Eu também caminhei, hoje descanso
Dos eleitos de Deus no vasto império!
Não se afastam de ti meus olhos ternos.
Manchou-me o pó da terra, a luz das luzes
Deu-me nova existência ao pé dos anjos,
Como te amei outrora, amo-te agora,
Furta ao lodo de tu’alma, olha as alturas,
E do empíreo no azul verás meu rosto!”
E, quiçá fiando-se na teoria de Flammarion de que há pluralidade de mundos, ele quer saber de quem é a excelsa voz:
“Donde parte esta voz? De que recinto
Misterioso, oculto, me dirige
Tão suave concertos? Porventura
Além do firmamento, além dos astros
Uma plaga de paz e amor existe?
Por toda a parte só matéria vejo,
Luzes, vapores, ar, globos, esferas
Mundos e mundos, sempre cheio o espaço!”
E descrente em seus clamores, finaliza dirigindo-se a Deus, que não ouve na natureza, mas em seu cérebro:
“Perdão, perdão, meu Deus! Busco-te embalde
Na natureza inteira! O dia, a noite,
O tempo, as estações, mudos sucedem-se,
E se falo de ti mudos se ecoam!.”
Mas eu sinto-te o sopro dentro d’alma!
Da consciência ao fundo te contemplo!
E movo-me por ti, por ti respiro,
Ouço-te a voz que o cérebro anima,
E em ti me alegro, e choro, e canto e penso!"
E pensa que Ele está em toda a parte e em parte alguma:
"Da natureza inteira que aviventas
Todos os elos a teu ser se prendem,
Tudo parte de ti, e a ti se volta;
Presente em toda a parte, e em parte alguma,
Íntima fibra, espírito infinito,
Move, potente, a criação inteira! (...)”
A poesia finda, com ele falando com Deus, sem perceber que era Jesus que falava consigo...
“(...) Eu creio em ti, e vejo além dos mundos
Minha essência imortal brilhante e livre (...)
“Vozes desconhecidas” na região do Araguaia
Joaquim de Almeida Leite de Moraes (1835-1895), professor da faculdade de direito de São Paulo, em certa passagem de seu livro “Apontamentos de Viagem” (1883), quando Presidente de Goiás, se recordou de uma noite em meio à madrugada, quando passava silenciosamente de barco perto de uma aldeia carajá na região do Araguaia:
“São 3 horas da manhã; mudez a bordo; silêncio no mundo. Eis que chegam aos nossos ouvidos gritos agudos e penetrantes, sucessivos e assustadores, que rompem por entre as matas da margem direita; vozes desconhecidas, semelhantes ao uivar das feras, confusas e ininteligíveis, se condensam e formam uma algazarra infernal; disséreis — a orquestra da barbaria!”
Misteriosa acusma: “sussurros longínquos, tique-tiques, crepitações e estalidos estranhos”
O engenheiro Ceciliano Abel de Almeida (1878-1965), em seu livro “O desbravamento das selvas do Rio Doce: memórias” (1959), durante uma expedição iniciada em 1905 para coordenar equipes de trabalho nas expedições de desbravamento e construção da estrada de ferro que liga Vitória a Minas Gerais, estando em repouso num acampamento às margens do rio Manhuaçu, um curso de água do Estado de Minas Gerais, pertencente à bacia do rio Doce, narrou como ele e sua equipe foram despertados em plena noite por ruídos estranhos vindos da mata.
“São 3 horas da manhã; mudez a bordo; silêncio no mundo. Eis que chegam aos nossos ouvidos gritos agudos e penetrantes, sucessivos e assustadores, que rompem por entre as matas da margem direita; vozes desconhecidas, semelhantes ao uivar das feras, confusas e ininteligíveis, se condensam e formam uma algazarra infernal; disséreis — a orquestra da barbaria!”Certa noite deitado na rede, onde dormíamos, acendemos uma vela e colocamo-la no chão, enquanto nos dispúnhamos a levantar. De repente surgiu uma cobra, serpeou por baixo de nosso leito, renteou a estearina e desapareceu. Todos a viram e, à uma, puseram-se de pé. Queriam saber se o ofídio nos havia mordido. Tranquilizamo-los. Agradecemos-lhes a cortesia e o interesse tão prontamente manifestados.
O chefe convidou-nos para procurar a cobra, que lhe pareceu venenosa.
Removemos, cautelosamente, canastras, sacos e calçados. Nossa vozearia acordou a turma. Compareceram o feitor e alguns trabalhadores, que nos ajudaram a esquadrinhar toda a barraca e não se achou o réptil.
Restabelecido o silêncio escutamos um sussurro longínquo, uma trisca indefinida ou, antes, tique-tiques, crepitações e estalidos estranhos que pareciam aproximar-se e, simultaneamente, chegavam à nossa barraca e atravessavam-na numerosos animalejos: ratos, baratas, grilos, rãs... e, de novo apareceu o feitor com um tição fazendo com ele cruzes no chão, dentro e fora da barraca, e disse-nos:
— Está explicado o aparecimento da bicha. Ela fugia das guaju-guajus, que já atingiram o nosso arranchamento. Lá deixei um homem riscando o solo com um pau aceso. Não saiam de suas camas. Vou buscar rescaldo e cerco a barraca de vosmecês e elas hão de procurar outro carreiro. Dizem os mais velhos que estas formigas guerreiras adivinham chuva, quando andam em correição. Mas isto nem sempre acontece. A noite está estrelada. Não acredito em mudança de tempo tão cedo.
O primeiro baliza voltou com cinza quente e brasas. Espalhou-as, conforme nos havia prevenido, e não fomos incomodados pelas guaju-guajus."
Um ex-presidente norte-americano presencia uma acusma nas selvas do Brasil
Depois de fracassar nas eleições de 1912, o ex-presidente americano Theodore Roosevelt (1858-1919), aos 55 anos, caçador que era, decidiu participar de mais uma arriscada aventura selvagem. Depressivo com a derrota, o remédio veio do distante Brasil: Lauro Müller, então ministro das Relações Exteriores do governo Campos Salles, chamou Roosevelt para participar de uma expedição pela Amazônia. Junto do não menos célebre coronel Cândido Rondon (1865-
1858) e equipe, incumbiu-se de uma tarefa científica: navegar e mapear o rio das Dúvidas, descoberto por Rondon alguns anos antes. O empreendimento foi então batizado de Expedição Científica Roosevelt-Rondon. Era o ano de 1913.
Em seu livro “Nas Selvas do Brasil” (1914), Roosevelt, dentre outros ruídos identificáveis, fala em “sons esquisitos partidos do fundo da mata”:
“A floresta se mostrava quase despovoada e silenciosa. Não nos era dado ouvir aquele coro de pássaros e de mamíferos, o que ocasionalmente acontecia em nossas viagens por terra, quando mais de uma vez fomos despertados de madrugada pelos gritos, chilros e vozeiro de macacos, tucanos, araras, papagaios e periquitos.
Ouviam-se, contudo, vez por outra, sons esquisitos partidos do fundo da mata e, à noite, varias espécies de rãs e insetos emitiam estranhos gritos e chios. O ruído parecia aumentar até a meia-noite e depois ia diminuindo pela madrugada, quando tudo silenciava.”
Acusma ou quiriri?
O pesquisador e jornalista
Angyone Costa, numa excursão pelo Alto-Xapuri em 1914, após ter passado por Óbidos, comentou os ruídos que ouvira após o navio em que viajava atracar na margem do rio. O texto foi publicado no livro “Indiologia” (1943). Notar que o autor comenta a respeito do coro formado por diversos animais conhecidos que ele distingue em meio à mata, à que dá o nome de ‘kiriri’. No entanto, é designação imprópria, pois quiriri é um termo regional (do tupi “kyrirá”
) usado nos estados do Amazonas, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que, como substantivo, significa silêncio noturno ou calada da noite, e como adjetivo significa silencioso ou solitário. Convém esclarecer que, nove anos antes de Angyone escrever seu texto abaixo, o escritor Euclides da Cunha, em expedição à Amazônia, observou que ali as noites “são fantasticamente ruidosas” .
“Silêncio, pesado e profundo é o que domina. Quando o navio procura a margem, para defender-se contra a força da correnteza, é envolvido pelas vozes abafadas da floresta. Ruídos confusos de sons distantes, mistura de assovios, de gritos, de guinchos, de bramidos. O estritor das guaribas, o guincho dos saguins, o pio das corujas, dos mutuns, dos carumbés, jacamins, o grasnar das araras e dos papagaios, formam um coro onde se distinguem vozes que provocam arrepios. O navio aproxima-se mais do barranco e aquela confusa orquestração de ecos estranhos passa a repousar sobre um motivo musical que está sempre na floresta amazônica e que mais se acentua à proporção que a noite desce: o kiriri da mata, som despertado pela conjunção de ruídos, de insetos e seres infinitamente pequenos, que estão sempre presentes na planície anfíbia.”
Quiriri, acusma de índio
O escritor Manoel Victor, pai do famoso desenhista e pintor Manoel Victor Filho, em seu romance
Os Dramas da Floresta Virgem (1926), traz uma boa descrição daquilo que vem a ser exatamente o oposto da acusma:
“Em Mato Grosso, o silêncio de chumbo que acompanha a noite nas proximidades da água negra tem o nome de quiriri, como os chamam os nativos. O Quiriri aparece logo à primeira hora com a sua coorte de espantalhos, de sustos, de surpresas, e não há cérebro por mais tranquilo, que o suporte.”
Amigo de Monteiro Lobato comenta uma misteriosa acusma
O escritor Godofredo Rangel (1871-1945), célebre correspondente de Monteiro Lobato, em seu livro “Vida Ociosa” (1920), fez uma ótima descrição de uma acusma, “sons indecifráveis, mesmo para os que estão familiarizados com a vida nas brenhas”.
“Fechou-se a noite.
(...) Longe em longe vem da mata virgem um ulular soturno, voz de mistério que coa nos nervos um arrepio de pavor. Uma vida noturna que começa.
(...) Mais uma vez o ulular remoto encheu a calma da noite com seu lúgubre ecoar.
– Que significa esse uivo, Sr. Próspero? – perguntei. Fazendo um gesto vago, o velho respondeu:
– Não sei. A mata é misteriosa. Pode ser um pio de ave noturna ou o urrar de uma fera. Há certos sons indecifráveis, mesmo para os que estão familiarizados com a vida nas brenhas. Daí as superstições, a crença no sobrenatural, tão comum entre os rústicos ...”
A "afinação da noite"
Outro que se refere ao fenômeno acusma, mas de maneira sútil, é o escritor regionalista Bernardo Élis (1915-1997), e o fez em seu famoso livro “A Bagaceira” (1928), romance de conteúdo social que se passa em meio à natureza do cerrado goiano. Nos escreve ele:
“Vinha da mata vizinha um rumor de crepúsculo brasileiro.
O vento, como um bocejo de sono, transportava o barulho indistinto. E sons miúdos consertavam-se num apito agudo, de mil fôlegos; muitas vozes zumbiam num só grito. Era a afinação da noite.
(...) E a natureza abafou-se, novamente, em cochichos. Sussurros anônimos. Pios assustados. Murmuravam os sons humildes que tinham estado à espera do silêncio.”
Um outro estrangeiro presencia fenômeno semelhante
Por esta mesma época
em que Roosevelt esteve no coração do Brasil, um outro estrangeiro, o português Ferreira de Castro (1898 - 1974), esteve a trabalho num seringal da floresta Amazônica, em Belém do Pará. Aí, viveu
dos 12 aos 16 anos, e essa vivência serviu de matéria para o seu clássico romance “A Selva” (1930), em que narra o contato com os sofrimentos e injustiças vividos pelos trabalhadores.
Esse romance tornou-se um grande sucesso tanto em Portugal como no Brasil, e em sua terra a obra é considerada precursora do Neo-Realismo. Uns dos diversos méritos do livro é que constitui
um riquíssimo conjunto de informações sobre a fauna e a flora da região amazônica. Certo dia, num crepúsculo em meio ao seringal, o personagem Alberto presenciou a acusma:
“A selva escurecia rapidamente. O entrançado inferior diluía-se, perdia contornos e volumes na negridão nascente. Cresciam os recantos onde havia eterna sombra e iam envolvendo, tragando, os caules grossos e centenários. O verde rasteiro fora já absorvido e, cá embaixo, só pardejava a folhagem que a morte desprendera. A luz beijava agora apenas as franças mais altas, que, finalmente, se mostravam em toda a fantasia do seu recorte, sob um céu de azul morno e baço.
O silêncio tinha, enfim, uma sincope. A selva começava a falar no olvido da noite. Surgiam, por toda a parte, vozes estranhas e imprecisas – um rala-rala sem nexo a encher os ouvidos de Alberto.”
Um outro romancista fala dos ruídos noturnos da mata
O carioca Luís Martins (1907-1981), jornalista, poeta, romancista e crítico de arte, em seu conto “Fazenda” (1940), faz menção à acusma. Notar, porém, que ele fala da ausência de ventos.
“Às vezes o vento não vinha. As noites eram do uma serenidade de filme. Pareciam noites de mentira. Da mata vinham rumores esquisitos, insistentes, múltiplos, mas suaves e harmoniosos. Pássaros, insetos, um curiango, um grilo, sapos, povoavam a noite de sons. Quando fazia luar, era uma beleza. As folhagens murmuravam com doçura. Os colonos pontilhavam na viola inteiramente indiferentes a sugestão da paisagem.”
A acusma nas memórias de um velho caçador
O caçador, pescador e jornalista, Francisco de Barros Júnior (1883-1969), paulista da cidade de Campinas, em seus livros publicados em série, "Caçando e Pescando Por Todo o Brasil", relata suas excursões realizadas na primeira metade do século XX por todas as regiões do Brasil. Este notável e inspiradíssimo escritor, que recomendo, é mais um dos que me ensinaram a empunhar melhor uma pena e escrever com mais propriedade e sentimento sobre a natureza.
Numa de suas
excursões, relatada no primeiro livro da série lançado em 1945, veio a ouvir um
desses ruídos noturnos quando estava a caçar em meio a um pinheiral num lugar
conhecido como Campos de Laranjeiras, no caminho de Catanduvas e Foz do Iguaçu.
O fato lembra o anteriormente narrado por Taunay nos sertões do Mato Grosso.
Perdido na mata, junto de um amigo que dormia, ele acordado, aos pés de uma fogueira,
narrou o que ouvira:
“Nesta noite também nada se ouvia senão a queda dos pinhões e o zumbir abafado do vento na copa dos pinheiros, Isso mesmo, a intervalos relativamente longos. É interessante esse ruído. Está tudo parado, tal como se estivéssemos no fundo de uma caverna. De repente, sutilmente começa a vir, lá do fundo da floresta, uma como bulha de águas correntes entre pedras de alguma corredeira. É algo de misterioso, um como bater de asas de insetos, ou como o ar escapando-se de miríades de encanamentos. Vai-se depois avolumando, avolumando, até que chega, passando, lá pelo alto, agitando de leve a copa das árvores, fazendo cair gravetos, folhas e sementes. Depois tudo se aquieta. É como se a floresta respirasse...""Por conseguinte, na forma do costume, dormimos ao relento, porém à sombra da floresta, de cujo fundo sombrio ruídos os mais estranhos se faziam ouvir: ora o guincho do cuatá, hora o estranho medonho da onça pintada.
O silêncio da noite era perturbado ainda, pelo coaxar das rãs e, de quando em quando, pelo ganido abafado de um guará, ao mesmo tempo que, mais perto, eu ouvia certo barulho esquisito, lá embaixo da barranca do rio. Talvez algum jacaré, ou alguma sucuri, movimentando-se n’água.
(...) Horas depois, repousava vamos. A noite estava bastante sombria. A lua não refletia a sua claridade. No céu, somente negras nuvens e uma que outra estrela solitária. Do fundo escuro da floresta, ouviam-se de vez em quando, o grito estridente do cuatá, o maior macaco das selvas brasileiras, tão abundante nessas regiões;"
Sertanista da expedição "Roncador-Xingu”
fala dos ruídos noturnos ouvidos em meio à mata
O sertanista Ayres Câmara Cunha, o famoso sertanista que se casou com a índia Diacuí, em expedição realizada em 1951 na região dos rios Arinos, Juruena e Tapajós, numa determinada passagem, fala dos ruídos noturno que ouvira:
"Por conseguinte, na forma do costume, dormimos ao relento, porém à sombra da floresta, de cujo fundo sombrio ruídos os mais estranhos se faziam ouvir: ora o guincho do cuatá, hora o estranho medonho da onça pintada.
O silêncio da noite era perturbado ainda, pelo coaxar das rãs e, de quando em quando, pelo ganido abafado de um guará, ao mesmo tempo que, mais perto, eu ouvia certo barulho esquisito, lá embaixo da barranca do rio. Talvez algum jacaré, ou alguma sucuri, movimentando-se n’água.
(...) Horas depois, repousava vamos. A noite estava bastante sombria. A lua não refletia a sua claridade. No céu, somente negras nuvens e uma que outra estrela solitária. Do fundo escuro da floresta, ouviam-se de vez em quando, o grito estridente do cuatá, o maior macaco das selvas brasileiras, tão abundante nessas regiões
Os antigos tropeiros e a acusma
Um outro escritor, o sorocabano Aluísio de Almeida (1904-1981), em seu livro “Vida e Morte do Tropeiro”, lançado em 1971, também fez a esse alusão à esse curioso fenômeno que os velhos tropeiros paulistas costumavam ouvir pelas noites dos sertões. Em seu texto, o viajante, “decifrador dos enigmas e charadas ”, fica a indagar o que poderiam ser esses estranhos ruídos noturnos:
“É incrível como se escutam sons à grande distância nos descampados e nos grandes vales dos nossos sertões. Como se o silêncio do ermo multiplicasse no ar tranquilo as menores vibrações. Era não só uma necessidade, como também um divertimento para o viajante, sempre o seu tantinho poeta. E decifrador dos enigmas e charadas. Que será, que não será? Em noites escuras, a aproximação da água de um simples riacho se denuncia pelo murmúrio. E, para que todos o sentidos cooperem, o tropeiro apeia e arranca alguns ramos, cheira-os, reconhece a planta e com ela o lugar, onde acaso já passou.”
Uma acusma fantástica
O médico Victório E. C. Codo, em seu livro "Da Montanha ao Pantanal” (1987), relatando sua passagem na década de 1940 por uma fazenda denominada Pequeri, próxima ao rio do mesmo nome, por duas vezes ouviu nas matas dessa região do Pantanal sons estranhos que ele sabiamente chama de “acusma”.
De todos os relatos inseridos neste estudo, este é o mais fantástico e misterioso, e o único em que o ocorrido se passa durante o dia, mesmo assim, não lhe fora possível identificar que sons estranhos eram aqueles que surgiam do meio das matas pantaneiras.
Sobre a primeira vez, ele escreveu:
“Saí lá pelas duas horas da manhã, rumo leste, aproveitando a luminosidade da noite enluarada.
O dia já estava bem avançado quando, curiosamente, notei que saíam do seio da floresta uns sons musicais como se muitas mulheres cantarolassem sem nexo, acusma (alucinação auditiva) que me fez lembrar a história das ninfas da mitologia. Perguntei ao meu guia se estava ouvindo aquilo e ele disse-me que sim. Uma boa resposta, pois também ele, acostumado àquele silêncio, teve a mesma percepção aparente daquela sensação externa não presente, tranquilizando-me.”
Na segunda, narrou sem novamente identificar o que ouvira:
“Outra vez no meio da mata, tornei a ouvir o acusma saído da floresta do Pantanal. São cânticos suaves, entoados por vozes femininas e que param repentinamente, quando falamos. São melodias agradáveis que nos deleitam todo o tempo da viagem. Dando asas à fantasia, é possível admitir-se a existência das deusas das florestas que, em legiões, entoam melopéias com o intuito de suavizar a monotonia de uma viagem longa e penosa a cavalo, espreitando os viandantes, por entre as árvores, os espinhos, a lama e as feras...”
Um outro caçador campineiro fala da acusma, que ouvira em matas paranaenses
O caçador Arlindo Pedro Zatti, em seu livro “Zatti – Suas caçadas e suas armas” (1974), caçando uma onça nas barrancas do rio Paraná em 1953, enquanto esperava pelo felino, próximo à um leitão usado como isca, deparou-se com a acusmae fez uma ótima descrição:
“O período que transcorre entre o entardecer e a completa escuridão da noite é de um silêncio absoluto e enervante. Se ao menos ventasse para que o leve farfalhar das folhas quebrasse aquela obsedante ausência de sons, a opressão do ambiente seria mais suportável. Felizmente, transcorrida aquela hora imprecisa, que não é dia e não é noite, nem há luz e nem se está em trevas, apenas sombras, a escuridão se impõe e começa, então, uma estranha sinfonia de ruídos e estalos, gerados pelas aves e animais noturnos. E a gente não se sente tão só.
A noite se adianta e com ela a luta pela sobrevivência do mundo animal. Ouve-se, então, guinchos de ratos caçados, estrilos de aves rapinadas de seus poleiros pelas garras dos corujões e o riscar dos vôos dos morcegos à procura de insetos. É a morte alimentando a vida. Há por toda parte aquela hipnotizante sensação de caça e caçador, de vítima e de algoz, a que não somos estranhos eu e o leitão. Este, por instinto, quiçá, influenciado pelo ambiente, acocorava-se e procurava, na imobilidade, fugir a pressão da angustia e à noite ameaçadora.”
Chefe Zequiel – um personagem rosiano louco por acusmas
André Vinícius Pessoa, mestrando em Ciência da Literatura, Poética, UFRJ, em seu texto “Um estranho personagem que habita as noites do sertão”, cita que no livro “Buriti” do escritor Guimarães Rosa, há um personagem marginal, o Chefe Zequiel, que era um exímio captador e sabedor de ruídos noturnos, portanto, um sujeito que tem sua sensibilidade despertada por acusmas. Diz que, se referindo a esse personagem, há uma carta endereçada ao escritor em 30-11-1963, em que o tradutor italiano Edoardo Bizzarri destaca um trecho desse livro que é “uma espécie de sinfonia da noite do mato (com todas as espontâneas implicações de simbolismo emotivo que a noite e a selva acarretam, e a dimensão lírica fornecida pela peculiar perspectiva narrativa – a pessoa do Chefe Zequiel)”. Com toda a certeza, a “submúsica” de que falava Rosa nesse livro, é aquilo que se conhece por acusma. Vinícius Pessoa complementa:
“Sua passagem em ‘Buriti’ é enigmática e tem o mérito de sinalizar para o canto noturno da natureza, trazido à tona por Rosa em sua narrativa quando transita por este bizarro personagem. Contraponto poético carregado de dissonâncias, o Chefe Zequiel também figura como um caso estranho dos Gerais. Sua fama é fundamentada por sua verdade insone, provocada por uma atitude deveras insana. O medo que lhe reveste de ser assassinado no escuro da noite não o deixa dormir. Em sua recusa radical ao sono, o Chefe passa a ouvir todos os movimentos noturnos. Com isso, desenvolve uma habilidade especialíssima para reconhecer e classificar os sons que ouve. O Chefe Zequiel, paradoxalmente, se faz um cientista de raízes inconscientes enquanto especula sobre os eventos invisíveis da noite.”
Caçador sulista comenta o que é uma noite na floresta
O caçador e jornalista Carlos Henrique Menke, conhecido como “João Grande”, em matéria publicada na revista Troféu, em abril de 1977, comenta as sensações ilusórias após passar uma noite na floresta:
“Quem nunca foi ao sertão não pode imaginar o que seja uma noite na floresta: uma horrível sensação de medo e solidão se apodera da gente, oprime, intimida, qualquer ruído é misterioso e sobressalta, veem-se onças a cada passo, índios se ocultam atrás das árvores e qualquer pedaço de pau é uma cobra pronta para o bote... Enquanto caminhávamos apressadamente. eu escutava os rumores soturnos que saíam da mata, os quais me deixavam meio arrepiado e faziam olhar para trás a todo instante... Pensando bem, era temor infundado e os perigos corriam mais a conta da fantasia do que da realidade.”
O "Príncipe dos Crônistas" dá o seu pitaco
Em 8 de dezembro de 1990, 11 dias antes de sua morte, o cronista Rubem Braga publicou uma de suas últimas crônicas no jornal O Estado de São Paulo, a singela “O vento que vinha trazendo a Lua”. Ela fala de uma visita sua ao apartamento de um amigo, e quando este “fora lá dentro buscar alguma coisa”, Braga ficou sozinho numa janela presenciando a Lua cheia nascendo em Copacabana. A certa altura, ele comenta:
“Foi então que passou por mim a brisa da terra; e essa brisa que esbarrava em tantos ângulos de cimento para chegar até mim ainda tinha, apesar de tudo, um vago cheiro de folhas, um murmúrio de grilos distantes, um segredo de terra anoitecendo.”.
Aluno e mestre mostram que para desfrutar da acusma, é necessário amar a natureza
Um, o aluno, é o já citado Fagundes Varella, que versejou:
“Compreender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos;
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa”.
Já o mestre dele, o não menor Gonçalves Dias, muito antes escreveu coisa semelhante:
“Se nunca a sós contigo, a pressentiste
Longe do zunir da turba inquieta.
No ermo, sim; procura o ermo e as selvas...
Escuta o som final, o extremo alento,
Que exala em fins de dia a natureza!
O pensamento, que incessante voa,
Vai do som à mudez, da luz às sombras
E da terra sem flor ao céu sem astro”.
Conclusões particulares...
Sem querer fazer comparações pretensiosas, este que vos escreve tem sim um pouco de Chefe Zequiel e muito do seu ídolo maior Fagundes Varella – a natureza é o meu elemento e é nela que eu vou me encontrar comigo mesmo. E em se falando do Zequiel, tenho mais de sujeito temente à um ataque de onça parda, do que medo de ser assassinado por um bandido, que os lugares que frequento em minhas solitárias andanças noturnas – e faço questão de ir sozinho e desarmado! – a maioria dos humanos não costuma pôr o pé à estas horas – falta-lhes tanto a coragem quanto o verdadeiro amor à natureza...
FONTES:
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