“Ouviam-se, às vezes, no seu interior,
acaloradas discussões, que terminavam
sempre em ruidosas gargalhadas de
Noratão, animador desses debates
entre ele e pessoas imaginárias.”
(Memórias de outro tempo.
Francisco de Brito, 1980)
acaloradas discussões, que terminavam
sempre em ruidosas gargalhadas de
Noratão, animador desses debates
entre ele e pessoas imaginárias.”
(Memórias de outro tempo.
Francisco de Brito, 1980)
Diz a sabedoria popular que não se deve olhar nos olhos dos bêbados, pois eles pensam que é um conhecido e vem conversar com você... Desnecessário dizer que o tal do Ananias era um desses tipos, em sua mais completa tradução...
Ananias Geraldo
Teixeira — eis seu nome de batismo! — era conhecido pelas crianças pelo carinhoso apelido de “Nanias
Polenta Frita”. Tido por inconveniente, diziam que vivia sujo,
fedido e bêbado. De estatura alta, com sua voz rouca, se exibia como um
perfeito maltrapilho pelas ruas da cidade. Meio caboclo, meio mulato, uma
barbicha rala de bode no queixo pontudo, “nariz de vidraça” (portanto achatado), o pescoço alto de galo
índio; em suma, predicados que o tornavam um tipo altamente caricaturável!
Donos de botequim o evitavam o quanto podiam, pois queria beber não tendo dinheiro, no que arrumava grandes confusões. Por beber demais, perdia a noção de tudo e de todos. Costumava frequentar o bar do Paulo Pascotti a partir dos anos 1930 (foto ao lado), hoje, um estacionamento, na esquina em frente ao Parque Infantil “Hermínio Ometto”, assim como a venda do Petrucci (foto abaixo), próximo ao largo da Capela de Santa Cruz, onde passava o tempo suplicando aos boiadeiros que lhe pagassem um “mata-bicho”... No entanto, em que pese estas desabonações, depoentes confirmaram que, no Pascotti, o Ananias “era um amor de pessoa".
Certa vez, para testá-lo, sem que este visse o Pascotti jogou discretamente uma nota de alto valor no quintal que o Ananias capinava. O negro, tão logo a encontrou, prontamente, foi entregá-la ao dono.
Dizem que quando o Ananias se via abatido pelos constantes porres, se dirigia até a “caixa d’água” da Avenida do Café (foto ao lado) e ali tirava uma tranquila soneca. Outro local em que costumava dormir era ali nas proximidades da mesma avenida, no antigo chalé do senhor Constante Archangelo, na rua Saldanha Marinho. Quando desaparecia da cidade, diziam que ele ia para a fazenda Mata Negra onde morava; por sinal, localidade onde outros dois tipos populares também residiam: os negros Jeremias e o Campeão. Depois de uma semana de sumiço, voltava para a cidade, todo sujo e bêbado como sempre. Meu primo “Zéca” Daltro cita que quando ele retornava dessas “excursões” rurais, sua mãe obrigava-o à um bom banho, e depois o alimentava fartamente. Bem alimentado e limpo, ele arrumava um cantinho e dormia por horas a fio.
O Ananias, tirando um cochilo em frente ao então “bar do Zambon”, entre 1961 e 64. |
Santa Cruz da encruzilhada da Vila Candinha, 1985. |
Cultor do psitacismo, era visto sempre falando sozinho: nada mais que monólogos, não fossem eles conversas secretas com entidades invisíveis que só ele enxergava!... Às vezes resmungava frases desconexas e ininteligíveis, numa repetição mecânica de palavras vazias e sem sentido tanto para ele como para quem o ouvia. Gostava das crianças, mas se provocado quando bêbado, “virava fera” e com suas trouxas e quinquilharias amarradas num cabo de enxada, ameaçava reagir os que lhe provocavam, xingando com tudo quanto é nome feio. Quanto mais “brabo” ele ficava menos se entendia suas palavras, pois tornava-se tartamudeante. Apesar de suas constantes investidas contra a molecada malcriada, jamais tocara um dedo em nenhuma delas. Quando se sentia de bem com a vida, costumava cantarolar satisfeito uma musiquinha estranha mais ou menos assim: “Barú-fá-fá-fá”.
O escritor José Carlos Victorello escreveu que, certa vez, a Ananias entrou cambaleando pelo portão da padaria São José, procurando pelo banheiro. Depois de algum tempo, voltou só de camisa, paletó, chapéu, sapato... mas, e a calça?! Oh, sim, a calça! A calça estava debaixo do braço!.. Foi um sufoco: ninguém na padaria sabia o que fazer com aquele negro pelado em plena padaria! Quando isto acontecia, as pessoas, e mesmo a polícia, cruzavam os braços ou fingiam agir. Por esta e por outras coisas condenáveis, com frequência, o danado do negro era recolhido à prisão.
As crianças gostavam dele e da maneira descontraída e curiosa como narrava seus casos e façanhas. Entre elas, se antecipando ao mentiroso Civilico, se gabando de seus prodígios, dizia orgulhoso que certa vez pegou uma onça pelo rabo e a malhou numa árvore; noutra, derrubou um touro com um murro; noutra ainda, caçou um jacu em pleno voo, dentre outras mentiras mirabolantes que só mesmo as ingênuas crianças acreditavam: “Esse homem danado não precisa contar até quatro para fazer o mundo parar!” ou “Ele é mesmo o tal!” E quem é que o desmentiria diante dos pequeninos, desfazendo a doçura de suas ilusões?...
Ananias foi mais um dos tipos populares que também morreram no anonimato. Cita-se que foi encontrado morto dentro do prédio da extinta Termoelétrica (foto acima). Victorello deu sua versão da morte do negro:
“Quando caÍa de
bêbado e ferrava no sono, era capaz de passar o dia inteiro dormindo. Nem o
vento nem a chuva o acordavam. Parecia que estava morto, e, certa vez, ele
passou o dia inteiro esticado debaixo de um rancho. Pensaram que ele estivesse
dormindo. Só que nunca mais acordou”.
Sua última
residência era uma casinha antiga que se situava na rua Santa Cruz, adiante do
citado bar do Paulo Pascotti, no lado esquerdo da rua. Contemporâneos dele,
dizem que seu enterro foi bastante concorrido, e uma multidão silenciosa
acompanhou seu féretro até o cemitério. Nesta data, no final de julho de 1957, publicou-se no Jornal de Araras uma pequena crônica, sem autor, trazendo mais
algumas facetas deste curioso tipo popular:
“NANIA. Era um bom. Era ingênuo, inofensivo. Destituído de tudo que representava preocupações de propriedade. Tinha um único bem, bem que é comum a todos — a vida.
Entretanto, para a criançada do lado do Parque Infantil, Nania dava a sua vida, a única propriedade que, possuia para atender a todos.
Arreliando aquela figura dormente, quase delirante, derreada pelo sofrimento e pelo vício, figura vencida de homem, os petizes, na sua inocencia, traziam àquela alma felicidade!
— Nania, pulenta fria.
— Toma banho na bacia...
A isso, somente a isso, é que o preto velho mostrava os dentes. Nesse momento é que seus olhos, quase sempre embaçados, deixava entrar uma luz, pela qual se podia ver a alegria do seu interior.
O Nania morreu. Seu nome, por certo, será lembrado no futuro, pela geração de hoje. Haverá mesmo algum historiador que a ele dedicará, uma de suas páginas relembrando dos tipos populares da cidade.
Seu único pecado era ser temido pelas criancinhas — até elas o conheciam. É que os pais, num tremendo erro educativo, querendo conseguir determinada coisa de seus filhinhos diziam:
— O Nania te pega.
Mas o preto velho, não fazia mal a ninguém.
As próprias crianças quando mais esclarecidas, amavam o Nania, brincavam com ele.
— Nania pulenta fria.
E o preto velho, o homem que era ‘rico’, com sua voz grossa, meio enrolada, dizia:
— Oitenta conto no banco.
Nania era tão ‘rico’ que ‘emprestou’ trezentos contos a muita gente na cidade.
Esta semana, seus amigos o conduziram à sepultura. Ali, Nania dormirá seu sono eterno.”
Caros leitores,
esse era o tal do Ananias...
* Capítulo de um livro meu em andamento, "Tipos populares de rua da Araras antiga", onde disseco 36 tipos que viveram no século 20.
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