quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

...MAS ACONTECE QUE EU ERA A LETRA “W”!... (histórias dos tempos de tiro de guerra)


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O primeiro semestre de 1980 foi o período em que prestei serviço militar em minha cidade, Araras – SP, servindo no Tiro de Guerra 02-053, como soldado raso. Hoje, preferiria que tivesse durado um ano, como o é atualmente, e você verão o porquê nesta curiosa história.


Os folgados escrivões do sargento...

O nº 138, o atirador Wenilton...
Lembro-me de, junto do amigo Edenilson Aparecido Daniel, tão logo iniciamos o TG, nos tornamos escriturários do sargento Nivaldo Lapa, encarregados de redigir as atas, pois nossas letras foram consideradas muito bonitas por ele. Quanto ao Edenilson eu não sei, mas quanto à mim, por ser desenhista eu havia aprendido a fazer letras técnicas — as tais letras de forma —, e isto certamente chamou a atenção do Sargento. 

Aos sábados, enquanto a nossa turma ficava suando fazendo ordem unida sob um sol de rachar mamona, eu e o Edenilson estávamos lá dentro numa sala silenciosa redigindo as atas, tranquilos enquanto tomávamos café... Lembro-me até que eu
e ele éramos os encarregados de fazer o café para o sargento, e com uma inesquecível exigência dele, a de colocarmos um “aditivo” na garrafa... Nunca me esqueço de sua voz rígida dizendo: “Não esqueçam de colocar uma colher de Nescau na garrafa após a passada, hein!"...

Edenilson Daniel.
O Lapa, ao que eu saiba, foi o único militar deste mundo que gostava de tomar café com chocolate naquela época — fato surpreendente para nós, em se tratando de um militar, o que nos parecia um gosto meio, diríamos, pueril... Isto, sem desmerecê-lo, obviamente; e nós até aprovamos a ideia, pois era gostoso mesmo!...


Um caso semelhante, mais feliz e... famoso

Décadas depois, soube que algo semelhante se deu com o antigo pintor e historiador negro, o baiano Manoel Raimundo Quirino (1851-1923) — patrono da História da Arte na Bahia —, que, pelo “belo talhe da letra” e instrução que tinha, foi aproveitado como escriturário no quartel do Rio de Janeiro, e assim, num surpreendente golpe de sorte, não foi despachado “de presente ao Lopez”, no que serviria como soldado na Guerra do Paraguai!... 


Como se vê, a chamada ironia do destino foi mais generosa com o Quirino do que com eu e o Edemilson: o artista não só não foi à guerra — onde correria alto risco de morrer —, como pode também dar continuidade à sua pródiga carreira de pintor e historiador.

Outro caso algo semelhante se deu com o escritor André Maurois (foto), quem, em sua "Memórias", disse que seu pai "fez o serviço militar em Limoges, na infantaria, e  lá se tornou um consencioso sub-oficial cuja linda letra era o orgulho do sargento-mór". Não digo que, por minha letra técnica eu fora o orgulho do sargento, mas que ela lhe chamara a atenção, chamara, pois eu fui sim o seu "escrivão-mór"...


O que é bom dura pouco...

A faixa clara é o Stander de Tiro no
Horto Florestal do Loreto, em 3-4-1982
Mas a coisa não parou por aí, e é justamente aí que a situação se inverte... Recordo-me que, também aos sábados, íamos praticar aulas de tiro no então Stander, que na época se situava no extinto Horto Florestal do Loreto, um lugar muito bonito, por sinal: um campo imenso de 50 metros de largura por 480 de comprimento tendo em seu início o depósito e ao fundo um barranco delimitando o Ribeirão das Araras. Vale dizer que o Horto estava íntegro esta época — e era um recanto belíssimo! —, e o início de sua destruição se daria no ano seguinte com a construção do Nosso Teto I.

A ordem para o tiro era por ordem alfabética. Assim, quem tinha o nome começando pela letra A atirava primeiro. O problema destes é que, pela ordem, eram os que chegavam primeiro ao Stander e montavam os painéis onde ficavam os alvos em que os atiradores praticavam... Provavelmente essa primeira turma começasse a tirar por volta das 6:30 horas, tendo 10 minutos para isso. Estes painéis eram montados numa espécie cabine de concreto subterrânea, sobressaindo a parte em que ficava o alvo por uma abertura no final da cabine. Os soldados, que se revezavam no trabalho, ficavam ali dentro protegidos dos tiros ao mesmo tempo em que trocavam os alvos de papel e faziam as anotações de acerto ou erro de mira. Mas, para os da letra A, tudo bem: eram eles quem montavam os painéis, mas também eram os primeiros a serem dispensados tão logo atirassem...

Lembro-me que ficar dentro dessa cabine era algo perigoso, uma vez que as balas poderiam ricochetar ali dentro e nos atingir. Era comum voarem farpas de madeira da moldura do alvo para todos os lados, devido aos tiros imperfeitos, e ali, era um zunir de balas atrás do outro — a maioria dos soldados tinha pontaria ruim mesmo!...

Um aparte aqui! Me permitam o detalhismo: chego à precisão de dizer que no dia 29 de março, um sábado, participei da 20ª turma de tiro — a última!... —, que atirou às 9 horas, no alvo 5 com a arma nº 113...


Ironia do destino...

Mas, enfim, aonde eu queria mesmo chegar com esta história? Pois bem: acontece que o nome do atirador nº 138 era Wenilton... Assim, voltando ao assunto da ordem nominal de tiro, como o leitor pode deduzir, os soldados de nome iniciando pela letra W, Y e Z eram os últimos a atirar, o que se dava por volta das nove horas quando o sol, já vai alto e judiava de que está pesadamente fardado e de coturno...

O Stander em 1980, vendo-se o depósito e o campo de tiro

Porém, o verdadeiro problema não era sermos os últimos a atirar — o problema mesmo era que, por sermos os últimos, éramos nós os que não só desmontavam os painéis-alvo — muito pesados por sinal —, como também levávamos um por um até o depósito do Stander, num percurso que entre este e a cabine orçava por uns 400 metros — uma pernada! E a coisa não parava por aí: além de carregar também alguns cavaletes auxiliares até Stander, tínhamos de recolher todas as armas na carroçaria do caminhão para depois guardá-las no depósito do TG!... Nisto, mais de meia hora nos era subtraída de nossa dispensa!... Nesta época de treinamento de tiros, pegamos a transição do Mosquetão M949 30-06 Springfield, pesado e de cano longo, pelo Mosquefal 7,62 M968, arma mais moderna e compacta, de modo que era menos penoso carregar as armas ao final dos tiros. Pelo menos isto!...


O belo Mosquefal 7,62 M968


Como se vê, o amigo Edenilson, por ser letra E, também não escapou dos painéis: por estar entre os primeiros, foi um dos que carregaram as molduras do depósito até 40o metros adiante na cabine, com a ligeira vantagem sobre mim de que não o fez sob sol escaldante...


Saldo de sentimentos

Mas que, amigos: não era nada ruim isso! Não só eu como todos adoramos estes dias de soldados de Tiro de Guerra! E eu, que particularmente fiz de tudo para escapar ao serviço militar — inclusive tentei forjar uma varicocele! —, depois que saí dali concluí que tudo foi mil maravilhas, e sinto saudades até hoje desses dias, momentos em que houve mais diversão e alegria que dores e tristezas. Sim, houve dissabores, em que pagamos todos pelos erros de outros soldados, mas no dia seguinte estávamos todos recordando e rindo à beça dos acontecidos. Como esquecer aquele dia em que o sargento mandou um grupo de soldados limpar o telhado e lá, para surpresa de todos, foi encontrado um mar de latas de cerveja!... Não importou se as latas foram ingeridas por nossa turma ou não — e a maioria eram latas velhas e enferrujadas! Pagamos pelo erro de todas as turmas que nos antecederam, e tivemos, cada soldado, que fazer 50 cópias à mão livre do Hino Nacional como punição! Desnecessário dizer que isto teve um lado bom, já que a maioria de nós sabe até hoje o hino de cor, de cabo à rabo e de trás para a frente!...

Tiro de Guerra 02-053

Resumindo, caros leitores, não sei dizer se fazer ordem unida sob o sol por 1 /4 de hora era pior que carregar pesados painéis, cavaletes e armas por mais de 400 metros, mas hoje nada disso importa — o que importa mesmo é, acima de tudo, que nenhum de nós soldados corremos o mesmo risco do pintor Manuel Quirino — o de sermos convocados para uma guerra —; do que passou, retivemos as boas histórias e lembranças desse período mágico da mocidade, feliz e saudoso do serviço militar, onde fizemos inúmeros e grandes amigos, amigos estes que até hoje cumprimentamos pelas ruas da cidade toda vez que nos revemos!


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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O TAL DO ANANIAS, UM TIPO POPULARÍSSIMO

“Ouviam-se, às vezes, no seu interior,
acaloradas discussões, que terminavam
sempre em ruidosas gargalhadas de
Noratão, animador desses debates
entre ele e pessoas imaginárias.”
(Memórias de outro tempo.
Francisco de Brito, 1980)
 


Diz a sabedoria popular que não se deve olhar nos olhos dos bêbados, pois eles pensam que é um conhecido e vem conversar com você... Desnecessário dizer que o tal do Ananias era um desses tipos, em sua mais completa tradução...

Ananias Geraldo Teixeira — eis seu nome de batismo! — era conhecido pelas crianças pelo carinhoso apelido de “Nanias Polenta Frita”. Tido por inconveniente, diziam que vivia sujo, fedido e bêbado. De estatura alta, com sua voz rouca, se exibia como um perfeito maltrapilho pelas ruas da cidade. Meio caboclo, meio mulato, uma barbicha rala de bode no queixo pontudo, “nariz de vidraça” (portanto achatado), o pescoço alto de galo índio; em suma, predicados que o tornavam um tipo altamente caricaturável!

Donos de botequim o evitavam o quanto podiam, pois queria beber não tendo dinheiro, no que arrumava grandes confusões. Por beber demais, perdia a noção de tudo e de todos. Costumava frequentar o bar do Paulo Pascotti a partir dos anos 1930 (foto ao lado), hoje, um estacionamento, na esquina em frente ao Parque Infantil “Hermínio Ometto”, assim como a venda do Petrucci (foto abaixo), próximo ao largo da Capela de Santa Cruz, onde passava o tempo suplicando aos boiadeiros que lhe pagassem um “mata-bicho”... No entanto, em que pese estas desabonações, depoentes confirmaram que, no Pascotti, o Ananias “era um amor de pessoa". 

Certa vez, para testá-lo, sem que este visse o Pascotti jogou discretamente uma nota de alto valor no quintal que o Ananias capinava. O negro, tão logo a encontrou, prontamente, foi entregá-la ao dono.

Dizem que quando o Ananias se via abatido pelos constantes porres, se dirigia até a “caixa d’água” da Avenida do Café (foto ao lado) e ali tirava uma tranquila soneca. Outro local em que costumava dormir era ali nas proximidades da mesma avenida, no antigo chalé do senhor Constante Archangelo, na rua Saldanha Marinho. Quando desaparecia da cidade, diziam que ele ia para a fazenda Mata Negra onde morava; por sinal, localidade onde outros dois tipos populares também residiam: os negros Jeremias e o Campeão. Depois de uma semana de sumiço, voltava para a cidade, todo sujo e bêbado como sempre. Meu primo “Zéca” Daltro cita que quando ele retornava dessas “excursões” rurais, sua mãe obrigava-o à um bom banho, e depois o alimentava fartamente. Bem alimentado e limpo, ele arrumava um cantinho e dormia por horas a fio. 

O Ananias, tirando um cochilo
em frente ao então “bar do
Zambon”, entre 1961 e 64.
Um dos diversos lugares onde o Ananias fazia às vezes de seu dormitório era sob uma das pontes do Ribeirão das Furnas, mas o lugar mais estranho e incompreensível, era na “mal-assombrada” santa cruz da estrada do matadouro (foto abaixo), hoje extinta, que se situava na bifurcação da estrada para a Vila Candinha e o Loreto. A opinião dos ararenses instados sobre o hábito do pobre negro, era a de que "era preciso ser muito homem para dormir ali”. Entre cacos de vidro, tocos de vela queimada e estátuas de santos quebrados e insetos, Ananias esticava o esqueleto e esquecia da vida!... O irônico, é que um outro famoso tipo popular, o negro Dito Flautista, que morava na chácara Independência (Loreto)  na época, tinha um verdadeiro pavor de passar por este recanto às desoras, pois também acreditava que o lugar era mal-assombrado.



Santa Cruz da encruzilhada da Vila Candinha, 1985.



















Cultor do psitacismo, era visto sempre falando sozinho: nada mais que monólogos, não fossem eles conversas secretas com entidades invisíveis que só ele enxergava!... Às vezes resmungava frases desconexas e ininteligíveis, numa repetição mecânica de palavras vazias e sem sentido tanto para ele como para quem o ouvia. Gostava das  crianças, mas se provocado quando bêbado, “virava fera” e com suas trouxas e quinquilharias amarradas num cabo de enxada, ameaçava reagir os que lhe provocavam, xingando com tudo quanto é nome feio. Quanto mais “brabo” ele ficava menos se entendia suas palavras, pois tornava-se tartamudeante. Apesar de suas constantes investidas contra a molecada malcriada, jamais tocara um dedo em nenhuma delas. Quando se sentia de bem com a vida, costumava cantarolar satisfeito uma musiquinha estranha mais ou menos assim: “Barú-fá-fá-fá”. 

O escritor José Carlos Victorello escreveu que, certa vez, a Ananias entrou cambaleando pelo portão da padaria São José, procurando pelo banheiro. Depois de algum tempo, voltou só de camisa, paletó, chapéu, sapato... mas, e a calça?! Oh, sim, a calça! A calça estava debaixo do braço!.. Foi um sufoco: ninguém na padaria sabia o que fazer com aquele negro pelado em plena padaria! Quando isto acontecia, as pessoas, e mesmo a polícia, cruzavam os braços ou fingiam agir. Por esta e por outras coisas condenáveis, com frequência, o danado do negro era recolhido à prisão.

  As crianças gostavam dele e da maneira descontraída e curiosa como narrava seus casos e façanhas. Entre elas, se antecipando ao mentiroso Civilico, se gabando de seus prodígios, dizia orgulhoso que certa vez pegou uma onça pelo rabo e a malhou numa árvore; noutra, derrubou um touro com um murro; noutra ainda, caçou um jacu em pleno voo, dentre outras mentiras mirabolantes que só mesmo as ingênuas crianças acreditavam: “Esse homem danado não precisa contar até quatro para fazer o mundo parar!” ou “Ele é mesmo o tal!” E quem é que o desmentiria diante dos pequeninos, desfazendo a doçura de suas ilusões?... 


 
Ananias foi mais um dos tipos populares que também morreram no anonimato. Cita-se que foi encontrado morto dentro do prédio da extinta Termoelétrica (foto acima). Victorello deu sua versão da morte do negro:

  “Quando caÍa de bêbado e ferrava no sono, era capaz de passar o dia inteiro dormindo. Nem o vento nem a chuva o acordavam. Parecia que estava morto, e, certa vez, ele passou o dia inteiro esticado debaixo de um rancho. Pensaram que ele estivesse dormindo. Só que nunca mais acordou”.

Sua última residência era uma casinha antiga que se situava na rua Santa Cruz, adiante do citado bar do Paulo Pascotti, no lado esquerdo da rua. Contemporâneos dele, dizem que seu enterro foi bastante concorrido, e uma multidão silenciosa acompanhou seu féretro até o cemitério. Nesta data, no final de julho de 1957, publicou-se no Jornal de Araras uma pequena crônica, sem autor, trazendo mais algumas facetas deste curioso tipo popular:

“NANIA. Era um bom. Era ingênuo, inofensivo. Destituído de tudo que representava preocupações de propriedade. Tinha um único bem, bem que é comum a todos — a vida.
Entretanto, para a criançada do lado do Parque Infantil, Nania dava a sua vida, a única propriedade que, possuia para atender a todos.
Arreliando aquela figura dormente, quase delirante, derreada pelo sofrimento e pelo vício, figura vencida de homem, os petizes, na sua inocencia, traziam àquela alma felicidade!
— Nania, pulenta fria.
— Toma banho na bacia...
A isso, somente a isso, é que o preto velho mostrava os dentes. Nesse momento é que seus olhos, quase sempre embaçados, deixava entrar uma luz, pela qual se podia ver a alegria do seu interior.
O Nania morreu. Seu nome, por certo, será lembrado no futuro, pela geração de hoje. Haverá mesmo algum historiador que a ele dedicará, uma de suas páginas relembrando dos tipos populares da cidade.
Seu único pecado era ser temido pelas criancinhas — até elas o conheciam. É que os pais, num tremendo erro educativo, querendo conseguir determinada coisa de seus filhinhos diziam:
— O Nania te pega.
Mas o preto velho, não fazia mal a ninguém.
As próprias crianças quando mais esclarecidas, amavam o Nania, brincavam com ele.
— Nania pulenta fria.
E o preto velho, o homem que era ‘rico’, com sua voz grossa, meio enrolada, dizia:
— Oitenta conto no banco.
Nania era tão ‘rico’ que ‘emprestou’ trezentos contos a muita gente na cidade.
Esta semana, seus amigos o conduziram à sepultura. Ali, Nania dormirá seu sono eterno.”

Caros leitores, esse era o tal do Ananias...



* Capítulo de um livro meu em andamento, "Tipos populares de rua da Araras antiga", onde disseco 36 tipos que viveram no século 20.
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