sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

MARCHA DE SOLDADOS À LUZ DO LUAR DO SERTÃO...

“Não há, oh gente, oh não,
Luar como este do sertão!”
(Luar do Sertão - Catulo
da Paixão cearense)

Wenilton, o
atirador nº 138
O calendário de atividades agendava a marcha noturna de 16 quilômetros da primeira turma de 1980 do Tiro de Guerra 02-053 para a noite do dia 31 de maio. No entanto, creio ela não fora realizada nesta data, como veremos adiante. 

Eu, particularmente, estava para lá de eufórico com esta marcha, pois além de ela ser realizada à noite, seria numa noite de lua, e lua cheia! Além do mais, o percurso se daria em zona rural, numa região então muito linda e preservada da zona sudeste de Araras!

Porteira da faz. Sta Terezinha. Á direita o campo de futebol. Final déc. de 1970.


O INÍCIO DA MARCHA

A marcha se iniciou nas imediações das obras do então futuro Clube dos Bancários, no Jardim Fátima, mas a caminhada “para valer” teve início mesmo na “parte selvagem” do trajeto, quando adentramos a a atual avenida Augusta Viola da Costa, uma estrada de terra ainda, a mesma que levaria até a aleia de bambuais que havia junto ao sítio Santa Terezinha, a parte mais notável de todo o trajeto.

Ao fundo, a bifurcação das avenidas Loreto e  Augusta Viola da Costa, julho 1982.
Ao centro, na bifurcação uma das três capelinhas de santa Cruz que aí haviam.


O portão de entrada do lado norte da faz. Santo Antonio. Final década de 1970.

À princípio, esta imensa aleia se estendia desde a Estação Ferroviária do Loreto, passando pelo sítio Santa Terezinha e fazenda Independência, indo até a porteira do lado norte da fazenda Santo Antônio. O percurso total era de quase 2 quilômetros. Não descobri se este trecho de bambuais também tinha um nome de batismo como a “Via Carola”, ou seja, a aleia de bambus situada do lado sul da fazenda Santo Antônio. Este era um bambual de espécie semelhante e, ao contrário do outro, ainda preservado. A espécie em questão é Phylostachys sp. (aurea?), conhecido popularmente como “bambu comum” ou “moso”.  Tem, porém este bambual um percurso de cerca de 1 quilômetro, constituindo ele uma belíssima estrada que se inicia na ponte sobre a rodovia que leva à Conchal e vai até a entrada da fazenda. 

Início da déc. de 1990, o "Via Carola", o bambual do lado sul da faz. Sto Antonio


MARCHA À LUZ DO LUAR

Portanto, a marcha de 14 quilômetros do dia 31 de maio, coincidentemente se sincronizava com a fase de lua cheia (de dois dias). Infelizmente, a caminhada seguinte, a de 24 quilômetros não fora realizada, e o motivo deve ter sido por algum problema de agenda, como veremos a seguir. Inclusive, por eu ter toda a certeza de ter ocorrido lua cheia na noite da primeira caminhada, é muito provável que a marcha tenha se dado dois dias antes, na quinta-feira do dia 29. E quem sabe o sargento não escolhera este dia devido à ser o primeiro dia da lua cheia, uma vez que ela seria uma ótima iluminação facilitando o deslocamento da tropa, já que normalmente nesta fase ela ilumina consideravelmente os caminhos. Quiçá o nosso instrutor não gostava também destas coisas tão comuns à campistas e mochileiros: lua cheia, bambuais e... café com chocolate, por exemplo, como vimos na postagem anterior... Como disse, houve mesmo um remanejamento na agenda de eventos: por exemplo, o concurso de tiro que era para ser realizado em Limeira em 26 de junho, fora adiantado para o dia 16 do mesmo mês, assim como o treinamento para juramento à Bandeira mudara do dia 28 de junho para o dia 17 anterior.

Mapa aéreo de 1978 da extinta empresa Terrafoto. Em laranja o percurso
inicial da marcha, e, em verde, o campo de futebol da fazenda Santa Terezinha.


O TRAJETO

Acompanhemos então o trajeto dessa marcha: das obras Clube dos Bancários — onde nos reunimos (por volta das 4 da manhã) e de onde partimos —, até o então campo de futebol do sítio Santa Terezinha — onde tomamos o rumo da fazenda seguinte, a Santo Antonio —, o percurso era de cerca de 2,4 quilômetros. Este trecho, metade era zona urbana — o bairro Jardim Fátima e o nascente Jardim Campestre, e metade estrada de terra com sítios ao longo do trajeto, incluindo três capelinhas de santa cruz que, por sinal, eu viria fotografar poucos anos depois. 

No início da estrada onde começava o bambual, havia uma porteira de madeira, porteira esta situada numa encruzilhada, até a porteira de metal (foto acima) da entrada das terras da fazenda Santo Antônio, mais 1,30 quilômetros. Aí também se situava o citado campo de futebol. Desta porteira, que também ficava numa encruzilhada,  até a colônia da fazenda, que tinha 120 metros de extensão, havia mais um retão de cerca de 1,38 quilômetros, sendo que o caminho era ladeado de árvores comuns e frutíferas.

A apostila dos atiradores
Segundo a Apostila da Instrução Militar Básica do Tiro de Guerra, a velocidade normal adotada em caminhadas noturnas em estrada é de 3 quilômetros por hora, mas marchamos muito mais rápido que isso. Lembrando que, ao amanhecer estávamos na lagoa da fazenda Santo Antonio, da partida até ela, onde chegamos por volta das 6 da manhã, levamos, num percurso de 5, 6 quilômetros, cerca de uma hora e meia, de onde se pode deduzir que todo o percurso, do clube ao cemitério, foi feito em cerca de 3 horas. Ainda segundo ela, havia quatro “percursos de marchas de treinamentos feitos pelo TG”: 8, 12, 16 e 24 quilômetros, sendo que a de 16 — a da história em questão — era noturna. Ao que eu me recorde, esta foi a única marcha que fizemos, infelizmente.


A BAGUNÇA...

Recordo-me que esta caminhada foi uma bagunça danada em certa parte da estrada, pois o cenário facilitava: em meio ao “túnel” de bambus que se curvavam e se uniam no meio do leito carroçável, havia a estrada iluminada pelos raios da lua que se coalhava entre os colmos e folhagens. Estava a lua, no início da caminhada, à cerca de 45º acima do poente, de modo que ainda iluminava suficientemente a paisagem. Então, os soldados que vinham atrás no pelotão em fila indiana, agarravam galhos de bambu e inclinando-os, batiam com eles na cabeça dos soldados que iam à frente... Felizmente,  o sargento, que ia à testa do pelotão junto do soldado balizador nada notava, de modo que o resto dos soldados, os bagunceiros do final do pelotão, se divertiam à valer... Vale dizer que eu estava entre esses soldados do final do pelotão, já que eu tinha o nome começando pela letra “W”!...

Segundo o professor Toninho Innocente, no final do século 19, este trecho de bambual deu origem à histórias de assombrações de escravos acorrentados que por aí vagavam às desoras!... 

Já escritor José Carlos Victorello, numa longa reportagem no Tribuna do Povo em 6 de agosto de 1978, onde fez seus comentários particulares sobre tipo popular Dito Flautista, escreveu que:

“No bambual que formava um túnel sobre a estrada da fazenda Santo Antônio, morava um bando de saci-pererê. Quando a bitatá (estrela cadente) riscava os céus na direção da fazenda, o Dito apertava o passo, rezava e pedia proteção à madrinha (Nossa Senhora do Patrocínio), que espantava as almas do outro mundo e deixava a estrada limpa.”


Bambual ilustrativo, semelhante ao do lado norte da fazenda Santo Antonio.

Longos minutos depois chegamos à porteira da Santo Antônio e o percurso a partir daí foi feito à sombra de velhas árvores, como eucaliptos, nespereiras e jaqueiras, onde, num determinado trecho, abaixo da estrada jazia mais uma outra velha santa cruz que, também, anos depois, fotografei pensando num futuro trabalho histórico. 

Capelinha de Santa Cruz na fazenda Santo Antônio, setembro 1986.
Não se sabe a história do que aconteceu para que ela fosse erigida.



A COLÔNIA

Colônia Grande - fazenda Santo Antonio, 1910

Mais alguns longos minutos chegaríamos à colônia da fazenda, a mesma onde entre as décadas de 1920 e 30 o meu avô paterno, o velho Francisco Rocha, se empregou como administrador. Quiçá não tenha ele, entre um trabalho e outro, entabulado uma conversa qualquer com algum membro do grupo dos modernistas, assunto do qual trato mais adiante. Taí coisa que ele nunca disse à ninguém, uma vez que, infelizmente, não era de falar muito nem contador de histórias, como o era sua esposa, a minha mestra Ana Rocha. Seu filho, porém, meu tio Antonio, disse que, por ocasião da Revolução de 32, quando as tropas vindas de Mogi Guaçú para Araras guerreavam com seus canhões, o meu avô colocava ele, criancinha ainda, no pescoço e ambos fugiam e se escondiam no meio do mato. 


O "LAGO BARTIRA", OU "TUPINAMBÁ"

Logo ao amanhecer adentramos à fazenda, e às margens do lendário “Lago Bartira” fizemos o chamado “alto horário”, ou seja, a pausa obrigatória do pelotão que é feita após 45 minutos de caminhada. Aí, sentados no gramado e observando a beleza da superfície das águas onde flutuavam fiapos de vaporosa cerração, fizemos um rápido café da manhã. Do outro lado do lago, bela como nunca, a lua se punha serena com uma fraca cor amarelada, cor de pastilha Supra-Sumo ou mesmo da cor daquelas pedras de enxofre que se colocava antigamente no cocho d’água dos galinheiros. 

Este lago, também conhecido como Açude Santo Antonio ou Lago Tupinambá, cita-se que é um dos mais antigos da cidade e foi construído na distante década de 1870, onde, na época, segundo o escritor e pintor Emílio Wolff, existiam jacarés-de-papo-amarelo.

Mapa aéreo de 1978 da extinta empresa Terrafoto . Em laranja o percurso
mediano da marcha, e, em verde a represa da fazenda Santo Antonio, em azul.


FAZENDA CENÁRIO DE FILME

A estação do Loreto, durante filmagem de "Luar do Sertão", rodado em 1947

E já que falamos de lua, vale lembrar que nesta secular fazenda foi rodado o hoje totalmente esquecido filme “Luar do Sertão”, isto no distante 1947, filme este do qual participara uma nova dupla caipira — que viria a se tornar a mais famosa dentre todas do gênero —, nada mais nada menos que Tonico e Tinoco, que, por sinal, estavam estreando na película.

Outro fato importante ligado à história desta fazenda — mas fato para se checar a veracidade —, é que há na cidade quem diga que o famoso tema sinfônico do maestro Villa-Lobos, o popular “Trenzinho Caipira” foi composto numa das inúmeras viagens de trem que o compositor fazia regularmente à fazenda.


A SANTO ANTÔNIO: O QG DOS MODERNISTAS DE 22

Lygia Fagundes, faz.
Sto. Antônio,  1956
Para quem não sabe da importância da fazenda dos Silva Telles para a história da cultura paulista, convém esclarecer que ela foi algo como que o QG dos intelectuais da Semana de Arte Moderna de 1922. Pela mesma aleia de bambuais e árvores onde fizemos nossa marcha, cerca de cinco décadas antes vindos de trem de São Paulo, passaram de charrete nomes de peso desse movimento cultural como o maestro Villa-Lobos, o escultor Victor Brecheret, as pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, os escritores Mário e Oswald de Andrade, etc. 

Vale lembrar também que foi nesta belíssima fazenda, na década de 1950, que a escritora Lygia Fagundes Telles escreveu parte do seu primeiro romance, o famoso e premiado “Ciranda de Pedra”, que inclusive virou novela de TV. Lygia era casada com o jurista e ensaísta Goffredo da Silva Telles Jr., seu ex-professor de Direito e proprietário da fazenda na época.
 
Dona Olívia Guedes Penteado, Blaise Cendrars, Tarsila do Amaral, Oswald
de Andrade Filho (Nonê) e Oswald de Andrade na fonte da fazenda Santo Antônio.


COMO SE DESTRÓI UM PATRIMÔNIO NATURAL

Dizia-se no começo dos anos 1980, que as casas do Nosso Teto I tiveram suas cercas e ranchos erguidos à custa deste bambual. Segundo o casal Antonio “Nicola” Fuzzaro (in memorian) e dona Beatriz, que tem sua chácara ao lado desta estrada, me contaram que em 1981, quando se deu a construção do “Teto”, iniciou-se a depredação deste bambual e com o surgimento do Nosso Teto II, ele foi extinto por completo. Ambos contam que a retirada se dava à noite, quando se podia ouvir nos fundos da chácara as pessoas cortando furtivamente os bambus.

O bairro popular Nosso Teto I, no ano de 1981. Notar uma das cercas
feitas com bambus extraídos dos bambuais da fazenda Santa Terezinha.


O FINAL DA MARCHA

A imponente fazenda Santo Antonio, em foto atual.

Voltando à marcha, à partir da comporta da lagoa, por estradas sinuosas e de terra também, ao lado de campos, capões de mato e canaviais, haviam mais cerca de 6,5 quilômetros até desembocar nas imediações do Cemitério Municipal, onde a marcha findou. Somando-se tudo, do clube ao cemitério, o percurso orçava pelos 12 quilômetros no total, não alcançando, portanto, os 16 propostos, infelizmente... 

Como se vê, o lugar para a caminhada noturna do TG foi muito bem escolhido, mas hoje este mesmo roteiro não teria o mesmo encanto, uma vez que o bambual por onde passamos foi totalmente destruído, além de o acesso à fazenda ser totalmente vetado. 

Villa-Lobos e um dos seus papagaios

Sim, amigos, por fim, não vimos os fantasmas dos antigos escravos pelo bambual; não passaram por nós carruagens levando os modernistas de 22; a Lygia não estava pelos arrabaldes com um caderninho à mão escrevendo seu romance, nem o Villa compondo suas peças ou fazendo seus gigantescos papagaios para a criançada; tampouco os depredadores do Nosso Teto não rondavam por ali à desoras na faina de arrumar bambu para a cerca de suas novas casas, mas, estes últimos, se o víssemos, ah, com certeza, iam ser escorraçados à botinadas!... Onde já se viu destruir uma maravilha daquelas! Mas a caminhada em si sob a luz do luar e o “piquenique” às margens da lagoa foi algo de sobrenatural e compensou tudo! 

Enfim, meus caros, o que eu sei dizer é que esta frígida noite de inverno em marcha sob a luz do luar foi realmente uma noite feliz, engraçada, nostálgica e, acima de tudo, inesquecível, e é por este e outros motivos que até hoje eu digo à todos os jovens em idade de serviço militar: Amigos, vale mais que a pena prestar Tiro de Guerra! É uma oportunidade única na vida! E, para fazer valer o que digo, conto-lhes velhas e instigantes histórias, como por exemplo, a do Tiro de Guerra 02-053 visitando o Quartel General  dos Modernistas de 22 numa manhã de luar!...

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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

...MAS ACONTECE QUE EU ERA A LETRA “W”!... (histórias dos tempos de tiro de guerra)


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O primeiro semestre de 1980 foi o período em que prestei serviço militar em minha cidade, Araras – SP, servindo no Tiro de Guerra 02-053, como soldado raso. Hoje, preferiria que tivesse durado um ano, como o é atualmente, e você verão o porquê nesta curiosa história.


Os folgados escrivões do sargento...

O nº 138, o atirador Wenilton...
Lembro-me de, junto do amigo Edenilson Aparecido Daniel, tão logo iniciamos o TG, nos tornamos escriturários do sargento Nivaldo Lapa, encarregados de redigir as atas, pois nossas letras foram consideradas muito bonitas por ele. Quanto ao Edenilson eu não sei, mas quanto à mim, por ser desenhista eu havia aprendido a fazer letras técnicas — as tais letras de forma —, e isto certamente chamou a atenção do Sargento. 

Aos sábados, enquanto a nossa turma ficava suando fazendo ordem unida sob um sol de rachar mamona, eu e o Edenilson estávamos lá dentro numa sala silenciosa redigindo as atas, tranquilos enquanto tomávamos café... Lembro-me até que eu
e ele éramos os encarregados de fazer o café para o sargento, e com uma inesquecível exigência dele, a de colocarmos um “aditivo” na garrafa... Nunca me esqueço de sua voz rígida dizendo: “Não esqueçam de colocar uma colher de Nescau na garrafa após a passada, hein!"...

Edenilson Daniel.
O Lapa, ao que eu saiba, foi o único militar deste mundo que gostava de tomar café com chocolate naquela época — fato surpreendente para nós, em se tratando de um militar, o que nos parecia um gosto meio, diríamos, pueril... Isto, sem desmerecê-lo, obviamente; e nós até aprovamos a ideia, pois era gostoso mesmo!...


Um caso semelhante, mais feliz e... famoso

Décadas depois, soube que algo semelhante se deu com o antigo pintor e historiador negro, o baiano Manoel Raimundo Quirino (1851-1923) — patrono da História da Arte na Bahia —, que, pelo “belo talhe da letra” e instrução que tinha, foi aproveitado como escriturário no quartel do Rio de Janeiro, e assim, num surpreendente golpe de sorte, não foi despachado “de presente ao Lopez”, no que serviria como soldado na Guerra do Paraguai!... 


Como se vê, a chamada ironia do destino foi mais generosa com o Quirino do que com eu e o Edemilson: o artista não só não foi à guerra — onde correria alto risco de morrer —, como pode também dar continuidade à sua pródiga carreira de pintor e historiador.

Outro caso algo semelhante se deu com o escritor André Maurois (foto), quem, em sua "Memórias", disse que seu pai "fez o serviço militar em Limoges, na infantaria, e  lá se tornou um consencioso sub-oficial cuja linda letra era o orgulho do sargento-mór". Não digo que, por minha letra técnica eu fora o orgulho do sargento, mas que ela lhe chamara a atenção, chamara, pois eu fui sim o seu "escrivão-mór"...


O que é bom dura pouco...

A faixa clara é o Stander de Tiro no
Horto Florestal do Loreto, em 3-4-1982
Mas a coisa não parou por aí, e é justamente aí que a situação se inverte... Recordo-me que, também aos sábados, íamos praticar aulas de tiro no então Stander, que na época se situava no extinto Horto Florestal do Loreto, um lugar muito bonito, por sinal: um campo imenso de 50 metros de largura por 480 de comprimento tendo em seu início o depósito e ao fundo um barranco delimitando o Ribeirão das Araras. Vale dizer que o Horto estava íntegro esta época — e era um recanto belíssimo! —, e o início de sua destruição se daria no ano seguinte com a construção do Nosso Teto I.

A ordem para o tiro era por ordem alfabética. Assim, quem tinha o nome começando pela letra A atirava primeiro. O problema destes é que, pela ordem, eram os que chegavam primeiro ao Stander e montavam os painéis onde ficavam os alvos em que os atiradores praticavam... Provavelmente essa primeira turma começasse a tirar por volta das 6:30 horas, tendo 10 minutos para isso. Estes painéis eram montados numa espécie cabine de concreto subterrânea, sobressaindo a parte em que ficava o alvo por uma abertura no final da cabine. Os soldados, que se revezavam no trabalho, ficavam ali dentro protegidos dos tiros ao mesmo tempo em que trocavam os alvos de papel e faziam as anotações de acerto ou erro de mira. Mas, para os da letra A, tudo bem: eram eles quem montavam os painéis, mas também eram os primeiros a serem dispensados tão logo atirassem...

Lembro-me que ficar dentro dessa cabine era algo perigoso, uma vez que as balas poderiam ricochetar ali dentro e nos atingir. Era comum voarem farpas de madeira da moldura do alvo para todos os lados, devido aos tiros imperfeitos, e ali, era um zunir de balas atrás do outro — a maioria dos soldados tinha pontaria ruim mesmo!...

Um aparte aqui! Me permitam o detalhismo: chego à precisão de dizer que no dia 29 de março, um sábado, participei da 20ª turma de tiro — a última!... —, que atirou às 9 horas, no alvo 5 com a arma nº 113...


Ironia do destino...

Mas, enfim, aonde eu queria mesmo chegar com esta história? Pois bem: acontece que o nome do atirador nº 138 era Wenilton... Assim, voltando ao assunto da ordem nominal de tiro, como o leitor pode deduzir, os soldados de nome iniciando pela letra W, Y e Z eram os últimos a atirar, o que se dava por volta das nove horas quando o sol, já vai alto e judiava de que está pesadamente fardado e de coturno...

O Stander em 1980, vendo-se o depósito e o campo de tiro

Porém, o verdadeiro problema não era sermos os últimos a atirar — o problema mesmo era que, por sermos os últimos, éramos nós os que não só desmontavam os painéis-alvo — muito pesados por sinal —, como também levávamos um por um até o depósito do Stander, num percurso que entre este e a cabine orçava por uns 400 metros — uma pernada! E a coisa não parava por aí: além de carregar também alguns cavaletes auxiliares até Stander, tínhamos de recolher todas as armas na carroçaria do caminhão para depois guardá-las no depósito do TG!... Nisto, mais de meia hora nos era subtraída de nossa dispensa!... Nesta época de treinamento de tiros, pegamos a transição do Mosquetão M949 30-06 Springfield, pesado e de cano longo, pelo Mosquefal 7,62 M968, arma mais moderna e compacta, de modo que era menos penoso carregar as armas ao final dos tiros. Pelo menos isto!...


O belo Mosquefal 7,62 M968


Como se vê, o amigo Edenilson, por ser letra E, também não escapou dos painéis: por estar entre os primeiros, foi um dos que carregaram as molduras do depósito até 40o metros adiante na cabine, com a ligeira vantagem sobre mim de que não o fez sob sol escaldante...


Saldo de sentimentos

Mas que, amigos: não era nada ruim isso! Não só eu como todos adoramos estes dias de soldados de Tiro de Guerra! E eu, que particularmente fiz de tudo para escapar ao serviço militar — inclusive tentei forjar uma varicocele! —, depois que saí dali concluí que tudo foi mil maravilhas, e sinto saudades até hoje desses dias, momentos em que houve mais diversão e alegria que dores e tristezas. Sim, houve dissabores, em que pagamos todos pelos erros de outros soldados, mas no dia seguinte estávamos todos recordando e rindo à beça dos acontecidos. Como esquecer aquele dia em que o sargento mandou um grupo de soldados limpar o telhado e lá, para surpresa de todos, foi encontrado um mar de latas de cerveja!... Não importou se as latas foram ingeridas por nossa turma ou não — e a maioria eram latas velhas e enferrujadas! Pagamos pelo erro de todas as turmas que nos antecederam, e tivemos, cada soldado, que fazer 50 cópias à mão livre do Hino Nacional como punição! Desnecessário dizer que isto teve um lado bom, já que a maioria de nós sabe até hoje o hino de cor, de cabo à rabo e de trás para a frente!...

Tiro de Guerra 02-053

Resumindo, caros leitores, não sei dizer se fazer ordem unida sob o sol por 1 /4 de hora era pior que carregar pesados painéis, cavaletes e armas por mais de 400 metros, mas hoje nada disso importa — o que importa mesmo é, acima de tudo, que nenhum de nós soldados corremos o mesmo risco do pintor Manuel Quirino — o de sermos convocados para uma guerra —; do que passou, retivemos as boas histórias e lembranças desse período mágico da mocidade, feliz e saudoso do serviço militar, onde fizemos inúmeros e grandes amigos, amigos estes que até hoje cumprimentamos pelas ruas da cidade toda vez que nos revemos!


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