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Araras foi também uma das inúmeras cidades brasileiras que, em 1918, não passou incólume ao surto da terrível pandemia, a chamada gripe espanhola, ou vírus Influenza — “o grande mal do século XX”. Não se sabe ao certo a sua origem geográfica, mas a imprensa espanhola, durante a I Guerra, anunciava que civis estavam adoecendo e morrendo em números alarmantes; depois, em março de 1918, a doença foi observada nos EUA. Os primeiros casos conhecidos da gripe na Europa ocorreram durante a guerra, em abril, atacando tropas francesas, britânicas e americanas estacionadas em portos de embarque na França.
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Hospital de campanha nos EUA durante a pandemia de gripe de 1918 |
A epidemia matou muito mais que a própria Primeira Guerra
Mundial, que terminou em novembro de 1918 com um saldo estimado em 16 milhões
de vítimas. Segundo afirmara o Ministro da Saúde Britânico na época, essa epidemia ocupou "nada menos que o terceiro lugar, talvez o segundo, na escala das grandes pragas" de todas as registradas pela História, tendo como rivais a do Reinado de Justiniano e a “peste Negra” do século XIV. Esta gripe foi
excepcional em termos de disseminação e gravidade, e acredita-se que até 5% da
população mundial tenha sido infectada, falecendo em todo o planeta entre 20 e
40 milhões de pessoas; porém,
outras estatísticas elevam o número a 100 milhões.
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Rodrigues Alves |
Depois do surto ocorrido na Europa, ele propagou-se pelo Brasil através dos navios de passageiros que aqui desembarcavam trazendo imigrantes. No Rio de Janeiro a gripe aportou em junho a bordo do navio Demerara, que teve a sua tripulação atingida pela epidemia em Dakar. No princípio, umas poucas mortes foram registradas, mas em outubro 300 pessoas pereciam por dia na cidade. Ocorreram no País 35 mil casos, entre eles o próprio Presidente eleito, o carioca Rodrigues Alves (1848-1919). No Estado de São Paulo, o número de vítimas chegou a cerca de 8 mil casos. Em Araras que, por sinal, tinha 8 mil habitantes na época, houve mais de uma centena de casos, registrados tanto na zona urbana quanto na rural. Nunca, em época alguma, o Dr. Narciso Gomes, o padre Alarico Zacharias e Luiz Tozzato, o zelador do Cemitério, se viram diante de tantos doentes e falecidos num espaço de tempo tão curto.
Os atacados pela gripe, geralmente eram jovens entre 20 e 40 anos, de modo que por nunca terem sido expostos à vírus semelhantes, não tinham nenhuma imunidade contra o da Influenza, no que sofriam bem mais que os atacados de uma gripe normal: os pulmões, congestionados e enrijecidos, tornavam o ato de respirar numa tarefa quase impossível. As infecções evoluíam rapidamente, e as pessoas morriam em poucos dias, às vezes, em questão de horas, logo depois do aparecimento dos primeiros sintomas, no que eram sufocadas pelos fluídos que tomavam conta dos pulmões. De cada seis ou sete casos, um degenerava em pneumonia tão grave que o paciente só teria duas possibilidades, em três, de escapar.
O que tornou essa linhagem tão mortal era um mistério médico, até que, em 2006, cientistas norte-americanos desenvolveram técnicas que permitiram resgatar e ressuscitar os genes do vírus de 1918 de tecidos de uma vítima da época cujo corpo fora encontrado congelado em neve. Análises desses genes e de proteínas codificadas revelaram características do vírus que poderia suprimir as defesas do corpo e provocar uma reação imune violenta nas vítimas, levando à morte. Os cientistas concluíram que, embora o vírus da gripe espanhola tivesse de fato ‘nascido’ pouco antes de 1918, ele surgiu quando um vírus da gripe humana – que já naquela altura, circulava entre a raça humana entre dez a 15 anos – ‘capturou’ um gene de gripe aviária. Não foi um vírus das aves que ‘saltou’ inteirinho das aves para os humanos nem resultou de uma mistura com um vírus suíno.
Relatos da época dão conta de que os corpos ficavam tão arroxeados que era difícil distinguir um cadáver de um branco do de um negro. Sabendo-se hoje da ligação com o vírus da gripe, não deixa de ser curioso o que este site relatou:
“Os médicos, também
alarmados, não sabiam o que receitar e indicavam canja de galinha. O resultado
foram saques aos armazéns atrás de frangos. Os jornais afirmavam que o
tratamento deveria ser feito à base de pinga com limão ou uísque com gengibre.”
Em carta descoberta e publicada no
"desenvolvem
rapidamente o tipo mais viscoso de pneumonia jamais visto. Duas horas após
darem entrada [no hospital], têm manchas castanho-avermelhadas nas maçãs do
rosto e algumas horas mais tarde pode-se começar a ver a cianose estendendo-se
por toda a face a partir das orelhas, até que se torna difícil distinguir o
homem negro do branco. A morte chega em poucas horas e acontece simplesmente
como uma falta de ar, até que morrem sufocados. É horrível. Pode-se ficar olhando
um, dois ou 20 homens morrerem, mas ver esses pobres-diabos sendo abatidos como
moscas deixa qualquer um exasperado”.
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Dr. Narciso Gomes |
Foi um ano muito difícil para a população da região que
parecia viver anos de pragas e maldições bíblicas. Primeiro, foram as pragas de
gafanhotos que surgiram vindos do Sul. Registros feitos em Mogi-Guaçu citam que
uma nuvem imensa e compacta, com alguns quilômetros de largura, cortou o céu da
cidade durante horas, seguindo em direção de Minas Gerais. Em Araras houve uma
passagem em setembro de 1917 e outra em fevereiro de 1918. No Rio Grande do Sul
(Panambi e Passo Fundo) já havia registros em 1906 e 1907, em época de forte
seca. Em Araras os registros mais antigos datam de setembro, outubro e novembro
de 1906 e maio de 1909. Como não se bastasse, meses antes do surto da gripe e
depois da praga dos gafanhotos, ocorrera a grande geada dos dias 25 e 26 de
junho de 1918, quando os termômetros chegaram a registrar 4 graus negativos
comprometendo toda a lavoura cafeeira, destruindo-se 4 milhões de pé de café.
O Prefeito Coronel André Ulson Júnior, junto do Doutor
Luiz Narciso Gomes, então Presidente da Câmara e Inspetor de Higiene Municipal,
tomaram medidas preventivas, dentre elas, destacam-se algumas curiosas
recomendações profiláticas:
— “Todas as pessoas que
tiverem sido afetadas de gripe, deverão conservar-se em suas casas. Não devem
cuspir ou escarrar nas ruas e calçadas, devendo fazê-lo somente em
escarradeiras ou vasos previamente munidos de uma solução de sublimado que a
Prefeitura fornece gratuitamente.”
— “As pessoas ainda não
afetadas devem evitar as que foram e que tenham ainda tosse; bem como enquanto
durar a epidemia, banir o modo comum de saudação por aperto de mão.”
— “Devem respirar pelas
narinas e não pela boca.”
— “Afim de preservar aquelas
de possível contaminação, poderão untar a mucosa, por meio de um pequeno tampão
de algodão, com a seguinte pomada: ácido bórico 2 gramas, vaselina 30 gramas,
mentol 10 centigramas.”
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Prefeito André Ulson Junior. |
Foi também colocado um guarda em cada casa que tivesse um
doente, de modo que se evitava assim
Pelo que
se depreende ─ certamente para evitar contágios ─, nenhum dos doentes foi
transferido para a Santa Casa da Misericórdia, que na época se situava num
prédio na então praça Mário Tavares, entre a igreja Matriz e a atual Casa da
Cultura.
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A Santa Casa da Misericórdia, exatos 10 anos antes da febre amarela.
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A Santa
Cruz foi uma das ruas bastante
afetadas pelo surto, na época, uma
rua ainda de terra batida, com casas com esgoto à céu aberto e latrinas, bem como locais de criações de animais como porcos e aves, enfim, lugares
propícios ao aparecimento de ratos e a famigerada peste bubônica, bem como de
mosquitos, devido à sua proximidade com o ribeirão das Furnas e seus brejais
adjacentes, mas não se sabe se estas
condições colaboraram para o avanço da epidemia. De todo modo, já no ano
anterior ao surto, havia em
Araras um rigoroso serviço de inspeção de quintais. Em maio de 1917, foram
inspecionados os quintais das 71 residências existentes ao longo desta rua. O fiscal municipal era o
senhor José da Luz, que notificou os proprietários de cinco casas, e “foram
intimados a fazer os serviços e limpezas necessárias, adotando certas medidas
higiênicas, indispensáveis”.
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A rua e a capela de Santa Cruz, exatas três décadas após o surto de febre amarela
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No início de novembro
do ano seguinte, Araras tinha suas primeiras vítimas de febre amarela:
o jornal Tribuna do Povo noticiava no dia 3 que houve uma vítima na rua Santa Cruz, no “prédio no
17”; no dia 10, na casa de no 29, era notificada mais uma
vítima; na no 55, duas vítimas, e na de no
89 outras duas. Nesta mesma data iniciava-se a distribuição de mantimentos às
vítimas pobres. Para 60 pessoas necessitadas que não podiam trabalhar devido à
doença, foram distribuídos: café, chá, açúcar, leite, pão, biscoitos, arroz,
feijão, fubá, farinha de mandioca, maisena, sal, toucinho, sabão e querosene,
sendo que na rua Santa Cruz, foram contempladas três pessoas da casa no
14, e duas pessoas da casa no 17. Em 24 de novembro surgiam novos casos na mesma rua: duas vítimas na casa no
5; um na casa no 13; uma na no 23; dois na
no 55 e uma na no 57. No dia 8 do mês
seguinte, mais quatro surgiam na casa no 6. No dia 15, outra
em prédio não citado, e no dia 29, nova outra vítima na casa no
38. Como os dados foram colhidos pelo
citado jornal e inexistem os exemplares do mês janeiro, não se soube o
que ocorreu neste mês, mas no início de fevereiro não mais se noticiava o
surto. No final, computou-se que morreram 31 pessoas na cidade.
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No sopé, a rua Sta Cruz, o casario e quintais, e a várzea do ribeirão das Furnas. Déc. 1940 |
A semelhança existente entre o vírus da gripe espanhola e
o atual vírus causador da gripe das aves na Europa e da Ásia é impressionante,
e sugere que foram necessárias mutações relativamente pequenas para que um
vírus aviário como o de 1918 passasse a infectar humanos. Assim, a mutação do
vírus da gripe comum de 1918 é semelhante à que surgiu nos casos da gripe
aviária (H5N1) ou gripe suína (H1N1). Nestes casos, como não era fácil
identificar o organismo que estava causando a doença, não era possível
encontrar um tratamento eficaz, tornando a doença fatal na maior parte dos
casos.
Sobre a pequena Araras desse ano crítico, o senhor Luiz Rubini, nascido em 1909, comentou em entrevista ao Opinião Jornal em fevereiro de 2003:
“Viemos para a cidade em
1918. A cidade daquele tempo era muito ruim. Não tinha calçamento, rede de
esgoto, privada patente. Quando a gente vinha pra escola o cheiro das fossas se
espalhava pela cidade. Ela começou a melhorar quando o Zurita foi prefeito”