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Houve um período em Araras, que a impressão que se tinha é que a cidade parecia viver sobre uma forte ameaça apocalíptica, como as que ainda ocorrem no Egito (foto, 17-11-2004), sendo “castigada” por uma trindade de pragas naturais, doenças endêmicas e fenômenos climáticos. O fato se deu entre os anos de 1906 a 1918, mas não foi apenas Araras quem padeceu dessa “maldição” – toda a região, bem como outros estados, esteve envolvida no processo. Primeiro foram as nuvens de gafanhotos, depois a “grande geada” e por fim a terrível “gripe espanhola”. Mas o que nos interessa aqui é somente as pragas de gafanhotos.
Os registros mais antigos sobre as pululações de acrídeos na cidade, ou seja, do aparecimento de grandes nuvens de gafanhotos, datam de um século atrás, em setembro, outubro e novembro de 1906, e, anos depois, em maio de 1909, em setembro de 1917, e outra em fevereiro de 1918. Nos princípios deste último ano, um tenente coronel, o senhor Fernando Silva, proprietário da fazenda Japuana, no Rio de Janeiro, comunicava à Sociedade Nacional de Agricultura que o pássaro anu era um excelente destruidor de saltões. Segundo uma reportagem do extinto jornal Cidade de Araras, de 21 de outubro de 1906, os ararenses estavam sentindo-se ofendidos, pois os tais insetos teimavam em não aparecer na cidade, ao contrário das cidades vizinhas: “Já estava doendo ao nosso amor próprio local a desatenção com que os gafanhotos, correndo por toda parte, ‘fazendo pouco bem e muito mal’, no dizer da canção, – esqueciam-se descortezmente de nós”. Em setembro, uma pessoa vinda da Capital, trouxe alguns exemplares, que ficaram expostos na redação do jornal, e a mesma afirmou que os gafanhotos “limitavam-se a interromper o trânsito dos bondes, o que não é pequena proeza para bicho tão pequenino”.
Finalmente, os visitantes tão esperados apareceram: “Ora afinal chegou a vez: estão entre nós os gafanhotos”. A seguir, nova decepção: “Não vieram em nuvens negras, de obscurecer os sol, conforme o gáudio dos telegramas”. As nuvens passaram voando alto e “Nem a binóculo!” foram vistas... Numa sexta-feira, porém, os insetos resolveram dar as caras: “(...) vieram em número maior e desceram à terra, naquela desordem inestética de que falamos”. O povo foi ao delírio: “houve quem visse nuvens negras, galhos vergados, campos literalmente cobertos, caminhos entupidos e etc.”. Estranhamente, a reportagem dizia que não houve prejuízos nas lavouras, mas, do contrário, os gafanhotos teriam de arcar com as perdas: “Não nos conta que os amáveis hóspedes tenham feito estragos dignos das crônicas, mas se alguém se julgar prejudicado que lhes apresente a conta no mais breve prazo”.. Quem saiu ganhando foram os animais: “As aves de terreiro fartaram-se, rachando de cheias, e graves perus, muito sérios, assonsados, banzando como bobos, de asas largadas, a não poder mais”... Em novembro, o mesmo jornal distribuiu um folheto com orientações de como combatê-los, época em que os saltões principiavam a brotar da terra e os fazendeiros começaram a “guerreá-los com método”, e havia “fiscais exclusivamente encarregados de vigiar-lhes a explosão”.
Ironia do destino, uma semana depois, tudo levava a crer que os tais insetos haviam mesmo se simpatizado com a cidade e resolveram ficar... e não se fizeram de rogados:“Há cerca de dez dias tem feito permanência em nosso município grandes bandos de gafanhotos, em mais ou menos abundância”. No entanto, houve prejuízos relativos, com “campos, mais ou menos arrasados, árvores e até galhos de café danificados e pequenas roças novas de milho completamente e radicalmente destruídas”. Uma nova preocupação surgia, então: eram os ovos colocados no chão e o surgimento dos terríveis “saltões” – a fase jovem do gafanhoto. Era “época de plantações de milho, cujas roças deverão nascer pelo tempo em que os saltões a saírem dos ovos postos agora hão de estar em plena fase de atividade destruidora”. Em novembro o jornal falava da “formidável eclosão dos gafanhotos”, da “calamidade destruidora”, e, apesar do “grande empenho em destruir os ovos (...) surgiram da terra (...) nuvens e nuvens de gafanhotos”. De um fazendeiro que não se precaveu, escreveu-se sobre o cafezal novo e os replantes, que tiveram suas folhas e rebentos verdes destruídos pelos saltões:
“Vimos em um terreno, talvez excepcionalmente estranho a esses cuidados, tão densa, compacta e cerrada mancha de saltões a evoluírem, fazendo seus estragos, que não se pode medir o estrago que eles vão fatalmente causar antes de levantarem vôo.”
O mais engraçado é que neste período, além de uma “semana de crimes”, um vento forte e constante, vindo do Noroeste, castigou a cidade, que por esta época, tinha suas ruas de terra: “E quando se abria a boca para falar, ao descompasso de tantas hostilidades, vinha uma nuvem de pó dar a resposta(...)”...
Em outubro de 1909 a coisa piorou e os gafanhotos vieram em maior número. O Cidade de Araras citou que grande parte de Araras foi invadida por gafanhotos e “A invasão foi talvez maior que a que se deu há cerca de três anos.”
Segundo o historiador Ricardo Artigiani (Mogi Guaçu – Três séculos de história), após a “grande geada” ocorrida entre os dias 25 e 26 de junho de 1918 em nossa região – fenômeno que atingiu toda a lavoura cafeeira, com os termômetros registrando 4 graus abaixo de zero –, surgiram grandes nuvens de gafanhotos, que diziam ser oriundas do sul do País, mas hoje, sabe-se que é limitada a capacidade de deslocamento dos enxames, ao contrário do que se supunha anteriormente. Registros citam que uma nuvem imensa e compacta, com alguns quilômetros de largura, cortou o céu da Mogi durante horas, seguindo em direção de Minas Gerais.
Em setembro de 1917 e fevereiro de 1918, meses antes de acontecer essa geada, houve em Araras dois novos surtos. No R. G. do Sul (Panambi e Passo Fundo) já havia registros desde 1906 e 1907, em época de forte seca. Os relatos sulistas surpreendem: em setembro de 1917, desceu nas proximidades da Estação Bocca, em Santa Maria, uma nuvem com extensão aproximada de 2 quilômetros “que obscureceu completamente o sol”. Dizia ainda a reportagem sobre a incrível dimensão do fenômeno: “Uma nuvem que apareceu em Julio de Castilhos até Val da Serra, tomava uma extensão de 32 quilômetros, tudo devastando”. Pragas de gafanhotos apareceram também em Paraibuna e S. J. dos Campos, e eram tantos que os pés de milho nas plantações vergavam ao peso dos insetos. Outra passagem revela um cenário inimaginável: “os caminhos tomavam um aspecto estranho, tapizados pela espessa camada verde de gafanhotos. Na sua obra destruidora, a infinidade de insetos fazia um ruído semelhante ao trovão de longe”. A escritora Zica Bergami – a famosa compositora da canção “Lampião de gás” –, escreveu que, em 1918, passou sobre São Paulo, Capital, uma nuvem de gafanhotos. Em seu curioso relato, ela escreveu:
“Deu-se pela manhã quando chegou aos nossos ouvidos, um ruído muito estranho, vindo do alto. Olhamos assustados, para cima e avistamos uma enorme mancha negra de milhares desses insetos, voando, todos juntos, desesperadamente.
Perguntamos ao nosso tio, o que era aquilo. Mas, antes da resposta, começaram a cair gafanhotos mortos por todas as partes. Nos telhados, no chão, nas árvores, onde ficavam dependurados, nos peitoris das janelas e até dentro de casa.
Tivemos receio de que nos atacassem, mas, felizmente, depois daquele estardalhaço todo, zumbindo, zumbindo, os doidos foram-se distanciando, desaparecendo no infinito.”
Em Araras, além dos milharais, outras culturas que sofreram com a praga foram a de cana-de-açúcar e de arroz. As reportagens não descrevem qual era a espécie de gafanhoto, mas deve ser a Rhammatocerus schistocercoides. Estudos recentes sobre a bioecologia do gafanhoto concluíram que as pululações estão ligadas ao regime das chuvas, especialmente durante os meses de agosto, setembro e outubro, que é o período crítico no ciclo de vida do gafanhoto.
Uma descrição fiel do que é um ataque maciço de uma legião de gafanhotos, foi feita por E. Souza de Almeida, em seu livro O Homem e os Insetos (1946), mas o texto é sobre um ataque de “gafanhotos marroquinos” (Docitaurus maroccanus Th.), ocorrida no norte da África e sul da Europa.
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“Em cada muda que sofrem param e sobem aos arbustos, prendem-se com as garras das patas posteriores e dependuram-se de cabeça para baixo. E nesta posição que se dão as metamorfoses.
Nas primeiras mudas não têm asas e denominam-se, em linguagem vulgar, saltões. Na 3a idade aparece nos gafanhotos marroquinos a cruz branca do tórax, bem característica da espécie e passam ao estado de ninfa, caracterizada pelos cotos das asas.
Depois da última muda atingem o estado de adulto. Ficam imóveis 2 a 8 dias há espera que os tegumentos endureçam. Passam depois alguns dias em ensaios de vôo. Nesta ocasião, a quem observa de longe, parece que a superfície do terreno está em ebulição e atirando com jatos para o ar. São os gafanhotos nos vôos de ensaio. Até que uma manhã, em geral quente, e com ligeira brisa, todo o bando, como a um sinal dado, levanta vôo e parte, seguindo em geral a direção do vento. Este primeiro vôo é pesado e curto, mas em cada dia mais adiantam e, normalmente, podem fazer 80 a 50 quilômetros diários. Tem-se registrado, porém, 400 a 100 quilômetros e mesmo mais. Os Açores têm sidos atingidos com vôos que partem da costa de África a mais de 2.000 quilômetros.
Tais vôos são impressionantes e levam a desolação e a fome às mais ricas regiões.
De repente, na linha do horizonte, desenha-se uma nuvem negra de contornos irregulares, simultaneamente ouve-se forte sussurro, que aumenta rapidamente e lembra a zoada que faz a aproximação de forte aguaceiro.
Em breve a nuvem cobre todo o horizonte e o Sol escurece. Começam a cair gafanhotos, como chuva viva, e não tarda que todo o solo, todas as árvores e todos os arbustos estejam cobertos.
Mal se vê, tão densa e negra, a nuvem dos acrídeos que continuam a passar. No solo formam uma massa movediça de muitos centímetros de altura. As árvores vergam ao peso dos corpos de milhares de insetos que sobre elas pousam Passam-se horas, e os gafanhotos continuam a cair como granizo. À meia tarde a nuvem adelgaça-se pouco a pouco até que desaparece; os gafanhotos pousaram. Então o Sol mostra-nos um espetáculo que jamais esquece. Quanto a vista alcança está coberto de gafanhotos entretidos a roer tudo quanto apanham. Durante a noite ouve-se perfeitamente o ruído que fazem milhares de mandíbulas. Encontram-se gafanhotos por toda a parte, nas casas penetram pelas janelas e portas mal fechadas, e precipitam-se às centenas pelas chaminés abaixo. Os depósitos e poços ficam atulhados. Nos cursos de água os corpos dos que morrem afogados formam montões e sobre eles passam os outros.
No dia seguinte, a uma certa hora da manhã, já com o Sol alto, todo o imenso bando levanta vôo e segue na mesma direção levando para mais longe a devastação e a fome.
Nada se pode comparar ao aspecto em que fica uma região devastada pelos gafanhotos. As searas desapareceram, das hortas nem vestígios, onde havia pomares e veigas verdejantes hoje só se vê o chão negro, como que queimado. E, no meio desta desolação, as árvores levantam os braços nus o descascados como que implorando socorro.
É a miséria, a mais negra fome, a conseqüência desta devastação formidável!
Há poucos anos, numa invasão que sofreu a nossa província de Angola, numa povoação perto de Luanda, os gafanhotos, depois de terem devorado toda a vegetação, viraram-se ao capim seco que cobria as palhotas dos pretos e deixaram-lhes somente a armação. Entraram pelo teto de um armazém e destruíram tudo quanto encontraram: os panos de ramagem que os negros tanto apreciam, o peixe defumado, as massas, e até uns presuntos que estavam dependurados e ficaram reduzidos aos ossos.
No fim de uma série de vôos os gafanhotos param e fazem as posturas.
Pouco depois da fecundação das fêmeas os machos morrem.
Após a postura os bandos, muito dizimados, iniciam os vôos de regresso, mas parece que alcança o ponto de partida; as epidemias e os inimigos em breve os destroçam por completo. Mas ficam ovos na terra que na primavera dão origem a nova invasão.”
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BIBLIOGRAFIA
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