(Orson Welles, cineasta e ator)
“(...) a sensação é que mal raspei a
superfície de sua complexidade.”
(Daniel Piza, colunista do Estadão, em
ensaio sobre a obra de Dorival Caymmi)

Enfim, o difícil mesmo é não ceder à tentação de tirar conclusões definitivas sobre sua obra, mas afirmo convicto de que não se fala no legendário Sérgio Ricardo sem falar em diversidade cultural e pluralidade artística. Também queria deixar claro que não sou crítico de cinema e de música ou qualquer coisa que seja – apenas um músico e discípulo.

SÉRGIO RICARDO, SINÔNIMO DE POLIVALÊNCIA
País paradoxal, este o nosso – terra onde antropólogos franceses mexeram com a sensibilidade de índios do rio Orenoco em 1948 colocando Mozart para eles ouvirem, e agora, em pleno século 21, a massa, vítima do emburrecimento coletivo, se deslumbra ao som de músicas de conteúdo infantilóide e até mesmo cretinizantes – músicas sem vida própria compostas apenas para entreter o baixo ventre. Lamentavelmente as grandes gravadoras – hoje agonizantes – colocaram o gosto e a qualidade musical como item derradeiro na lista de suas prioridades, além de abrirem mão do compromisso com a educação musical do ouvinte. Pelo que notamos, no Brasil, Sérgio está muito aquém do que os ouvidos moucos à musica sofisticada costumam ouvir.
UM ARTISTA À FRENTE DE SEU TEMPO
Sérgio nunca, aos modos de certos artistas undergrounds estrangeiros, pensou em defenestrar pianos do alto de edifícios como forma de contestação ou posicionamento artístico. Apesar do vozeirão, não chegou a causar pane em est

"O clima no auditório estava extremamente tenso. As vaias, organizadas pelos fãs-clube, haviam entrado em moda naquela temporada. Elas, muitas vezes, atraiam mais atenções que as composições ali apresentadas. Poucos se davam ao luxo de escapar dos apupos e apitos ensurdecedores. (...) A parada era duríssima. Entre as finalistas estavam as antológicas 'Ponteio', 'Roda Viva', 'Alegria Alegria' e 'Domingo no Parque'. O circo já estava montado quando Sérgio Ricardo, acompanhado por um coral de operários da Willys e pelo Quarteto Novo, entrou no palco. Antes que soltasse os primeiros versos da bela - e incompreendida – 'Beto bom de bola' ouviram-se novamente as vaias."
Não só Sérgio fora vítima deste protesto convencional e populista – Caetano, Cinara e Cybele e Nana Caymmi também amargaram o mesmo. Porém, como Hendrix, a atitude lhe rendeu o maior ibope e ganhou as páginas dos noticiári


Basta ouvir os temas do filme de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (isto em 1964) e notar que muito antes do advento do rock brasileiro, a "violência" entrou no cenário musical brasileiro pelo violão e pela voz de Sérgio Ricardo (“Perseguição” é uma paulada, reconheça-se).
Se não cometo um engano aqui, um grande jornal publicou no início desta década que surgiram bandas de rock compondo ao estilo das trilhas sonoras de Sérgio para os filmes de Gláuber Rocha. Por outro lado, lembremos que a cosmopolita bossa nova é, hoje em dia, inspiração para grupos de música pop ou híbrida em todo o planeta – gente como Sean Lennon, filho de John, e a neobossanovista Bebel Gilberto, além dos veteranos Marcos Valle e Joyce vem atestar este fato. Antes disso, a neobossa, na década de 1980 na Inglaterra, já reinava pelas mãos de grupos como Matt Bianco, Everything But a Girl e Style Council, o que arrancou comentários humorados de Tom Jobim.
MÚSICA SUI GENERIS
"(...) é difícil de imaginar música ainda tão longe de ser compreendida em sua grandeza. Acho que isso acontece porque ela ainda é vítima de (...) apreensões: as do que não percebem a sofisticação de sua arte (...). Mas como água, sua música escorre pela brecha entre o rural e o urbano, o sociológico e o colonizado, o autóctone e o globalizado."
A meu ver, é difícil classificar a música do Sérgio – uma música que fala tanto ao intelecto quanto à sensibilidade –, mas ensaiando uma possível definição, creio que ela só poderia mesmo ser rotulada por meio de superlativos: “gigante”, p. ex. Sim, “música gigante” – é assim que a vejo, é assim que ouço essa música “viril”, saída da verve de um artista de sensibilidade e criatividade impar – uma música impositiva e forte na exteriorização de idéias e sentimentos. Impossível não se deslumbrar ouvindo pérolas como “Ponto de Partida”– uma canção que merecia, sem dúvida, estar ao lado da “música do século” – a eterna “Águas de Março” de Tom. Ali, uma letra de poesia tocante e inteligente; o violão – a um tempo sutil e vigoroso; a voz – possante, mas doce e maviosa como poucas; a melodia, ora emotiva, ora sutilmente agressiva, enfim, uma obra prima em todos os sentidos! Que dizer da beleza, da serenidade e do finesse de “Toada de Ternura”, “Do Lago a Cachoeira” e “O Nosso Olhar”, três das coisas mais ternas que você jamais ouvirá neste estilo e que não fariam feio num

Parodiando Sivuca ao ouvir pela primeira vez a genialidade de Hermeto Paschoal, pode-se dizer: “Sérgio, sua arte é maior do que este país!”. Desnecessário aqui, comentar obras seminais como a trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (foto) em parceria com Gláuber, bem como a incrível trilha “A Noite do Espantalho” – provavelmente seu melhor trabalho –, que, segundo Sérgio disse anos atrás, continua praticamente inédito tanto o filme quanto a trilha.
UM POETA: UM SENHOR LETRISTA

Há uma curiosidade em algumas de suas letras: tal como um modesto Guimarães Rosa da canção, Sérgio furtou-se, às vezes, a alterar as normas da língua e criar para suas letras e poemas alguns neologismos, atitude que, de certo modo, fez escola no Novo Regionalismo – p. ex.: “lembranceira” (Mundo Velho); “revivência” e “verdece” (Semente); “marmarejar” (Canção do Amor Armado), "Luandaluar" (título de música), etc. Esse procedimento lingüístico se difundiu de maneira muito sutil tanto na MPB de alto escalão quanto nos compositores que participam dos festivais de música regional que acontecem anualmente em todo no país. Alguns exemplos: ver Cláudio Nucci em “acontecência”; Gonzaguinha com “desparecença”, “maravida”, “pelaí”, “imbalança”; Milton Nascimento e Lô Borges com “aluar”; Edu Lobo com “borandá”, etc.
De posse disso tudo, Sérgio está entre os poucos autores brasileiros que criaram aquilo que se poderia chamar de “bossa rural”, estilo que Renato Teixeira em seus primórdios, Nara Leão, Theo de Barros, Dori Caymmi e o próprio Tom Jobim pouco depois, andaram desenvolvendo: uma música sofisticada e com temática regional.
O MAIS NORDESTINO DOS PAULISTAS

A canção-de-protesto é um dos pontos altos da autêntica musica popular do país, uma vez que foi ela a responsável por tentar impedir a americanização da MPB, que veio à luz com o impasse político resultante da renúncia de Jânio Quadros e do desgoverno de João Goulart. Sérgio junto com Vandré, a partir do Centro Popular de Cultura, tentaram colocar a música brasileira como “uma forma de participação mais efetiva no cenário político”, e S

Ainda que poucos reconheçam isto, Sérgio está para o Novo Regionalismo assim como João Gilberto está para a Bossa Nova e Luis Gonzaga para o Baião. Apesar de não ter sido pragmático como o Tropicalismo, é o Novo Regionalismo um movimento tão injustiçado pela crítica quanto o é o Clube da Esquina e o esquecido MAU que lançou Gonzaguinha, Ivan Lins, Aldir Blanc, Ruy Maurity e César Costa Filho.
É simples constatar que o estilo predominante atualmente nos festivais regionais de todo o Brasil é o Novo Regionalismo, não digo os últimos festivais das TVs, que foram verdadeiros fiascos, mas festivais como p. ex., o moderno Viola de Todos os Cantos, e outros do interior paulista, como os que acontecem em Avaré, Tatuí, São José do Rio Pardo, etc., que nos revelaram talentos como Fernanda Guimarães, Chico César, Zeca Baleiro, Renato Motha entre outros.
O VIOLONISTA SÉRGIO RICARDO: FAZENDO ESCOLA


Segundo o web designer Pastor Didi, da Equipe FX, o violão da música “Adriana”, gravada em 1973 pelo Sérgio, é um “samba cuja batida feita ao violão vai aparecer em 1974 na canção ‘Incompatibilidade de Gênios’ de João Bosco. E é essa 'pegada' que vai consagrar o estilo violonístico de João Bosco. Provavelmente do encontro dos dois violonistas em 1972, durante a gravação de 'Agnus Sei', apareceu esse jeito de tocar samba no violão, que vai marcar a MPB nos anos 70 e 80. Infelizmente só ouviremos novamente essa batida na mão do seu criador em 1979, quando Sérgio Ricardo grava a canção‘Lá Vem Pedra’”. Sérgio também é um grande arranjador e chegou a fazer trabalhos incríveis, nada convencionais, como podemos ouvir, p. ex., na trilha sonora de “A Noite do Espantalho” (foto).
SÉRGIO AO PIANO

Sérgio em 1962 no EUA tocou por um certo tempo com o grupo de jazz do conceituado jazzista Herbie Mann, fato que vem dispensar maiores comentários quanto aos seus dotes como pianista. A música "Zelão" foi transformada em samba-jazz pelo grupo Bossa Três de Luiz Carlos Vinhas, gravada no LP homônimo pelo selo Audio Fidelity, e foi sucesso nos meios jazzísticos dos EUA em 1962, isto, antes mesmo que “The Composer of Desafinado”, com Jobim, e “Getz/Gilberto”, com Stan Getz e João Gilberto fossem gravados e explodissem no exterior.
O “VOZEIRÃO”...

O microfone dinâmico, lançado por volta de 1955, talvez não fizesse falta à sua possante voz de peito – uma voz de timbre grave, porém num estilo isento de qualquer impostação vocal afetada de ópera européia ou de “verborragia melodolorosa do abolerado ninguém-me-ama/ninguém me quer” de que falava o maestro Júlio Medaglia.
Sérgio, na minha opinião, possui a voz grave mais doce e o vibrato mais puro, natural e perfeito de toda a MPB. Ele próprio disse que poderia ter sido “um Frank Sinatra de segunda”, caso tivesse seguido carreira nos EUA – colocação que muitos brasileiros concordam. Sabe-se que jazzistas norte americanos se simpatizaram tanto com a sua música que o convidaram para gravar por lá, o que infelizmente não aconteceu.
Queimando o incenso que ele merece, atrevo-me a colocá-lo no mesmo panteão que o próprio Sinatra, Tony Bennett, Dean Martin, Sammy Davis e Bing Crosby – bem, se Ruy Castro, não contaminado pelo velho complexo de inferioridade e fracassomania da crítica brasileira, já se atreveu a proclamar que Orlando Silva de 1935 a 1942 foi o maior cantor popular do mundo – melhor até mesmo que Bing Crosby –, por que não fazer este jus ao nosso grande Sérgio?
“VOCÊS (SÉRGIO E GLÁUBER) VÃO SER OS ÚNICOS BRASILEIROS OUVIDOS DAQUI A CEM ANOS”...

Totalmente ciente de suas coordenadas culturais, em momento algum cedeu Sérgio um milímetro em suas desígnios estéticos. Sua fidelidade à sua arte, sua postura íntegra em relação à própria obra – jamais oportunista, como queria a crítica derrotista –, fizeram dele talvez o mais maldito entre os malditos, o mais marginal entre os marginais dentre os artistas brasileiros que arcaram com o ônus de tais rótulos, o que o relegou à um relativo limbo artístico em relação à outros artistas contemporâneos seus. Felizmente, o fato jamais o impediu de continuar edificando o seu legado cultural – que é vasto. Em suma, Sérgio em momento algum vendeu-se ao sistema e submeteu sua arte ao make up do comercialismo – no que se tornou o avesso do maior oportunista da MPB – me refiro a Caetano Veloso...
Veja esta curiosidade dita pelo cartunista Ziraldo na revista Bundas (set. 1999), à respeito do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”:
“Vocês (Sérgio e Gláuber) vão ser os únicos brasileiros ouvidos daqui a cem anos. Uns seis anos depois do filme, um americano maluco enterrou as grandes obras de arte do século XX pra resistirem à guerra atômica, e a única coisa que entrou da América do Sul foi “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
É um truísmo: Sérgio Ricardo é vanguarda sempre e, pelo jeito, como um contemporâneo do futuro, não pensa em parar tão cedo de entoar o seu tradicional bordão: “Vou renovar!”.

Desnecessário dizer que algumas de suas obras devem ser obrigatoriamente citadas em qualquer obra sobre cinema nacional que se preze. “A Noite do Espantalho” – por sua vasta coleção de prêmios no exterior –, está, junto com “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, entre as obras senão cosmopolitas, entre as mais respeitadas e conhecidas no exterior.
Também não estou gabaritado para fazer uma análise da dramaturgia e do discurso cultural e ideológico de sua cinematografia, mas transcrevo aqui algo que talvez não fuja a verdade, citado pelo lendário produtor cinematográfico Antonio Polo Galante:
“Você não pode falar sobre cinema brasileiro indo para a frente sem pensar nesse pessoal que construiu a base”.
NOVAMENTE, O POLIVALENTE SÉRGIO...

Sergio também, por sua obra impar com várias contribuições definitivas à arte cinematográfica e musical, cativou intelectuais de peso como Antonio Houaiss, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Haroldo de Campos e Carlos Drummond de Andrade. Também foi endeusado por artistas de quilate como Tom Jobim, Gonzaguinha, Chico Buarque, Alceu Valença, Quinteto Violado, entre outros não menores.
Sérgio, como bem colocou numa análise o já citado Pastor Didi, é um daqueles artistas que só se encontrava na época da Renascença. Vem a calhar tal colocação, já que “estamos atravessando o maior período de criação legal de riqueza desde a época da Renascença” como se constatou na conferência “Internet & Society 2000” – um encontro entre os papas da Internet mundial.

Que estes que "não sabem o que estão perdendo", e que não ficaram incólumes à fatalidade de não poder ouvir e ver aquilo que Sérgio Ricardo esteve nos propondo estes anos todos, possam descobrir agora em sua homepage a obra deste "senhor talento" e, assim seguir as suas pegadas, de preferência tendo como divisa este verso infalível que define com precisão sua profissão de fé: "Tenho improviso no passo e caminho para todo lado".
Wenilton Luís Daltro,
Araras, 2001
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"Há muito achamos que a obra de Sérgio Ricardo - musical e cinematográfica, está a merecer um longo ensaio, cujo ante-projeto já tentamos e publicamos (Revista "Quatro Estações", verão de 1971), mas para cuja elaboração haveria necessidade de uma pesquisa de maior profundidade e um indispensável longo/pessoal depoimento do próprio autor."
Enfim, espero que, de alguma forma, esta minha análise venha trazer alguma contribuição ao sonho acalentado por Milharch.
MAIS SOBRE SÉRGIO RICARDO:
SITE OFICIAL:
www.sergioricardo.com
MYSPACE:
http://profile.myspace.com/index.cfm?fuseaction=user.viewprofile&friendID=335739987
COMUNIDADE NO ORKUT:
http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=162005
Site CONTEE - A Volta de Sérgio Ricardo:
http://www.contee.org.br/noticias/artigos/art168.asp
Blog POUCO DE TUDO - Sérgio Ricardo e Beto Bom de Bola no festival da TV: http://dan-poucodetudo.blogspot.com/2007/08/sergio-ricardo-e-beto-bom-de-bola.html
Blog PROSÁPIA - Festival de 1967 - Sérgio Ricardo (Beto bom debola): http://prosapia.blogspot.com/2008/02/festival-de-1967-srgio-ricardo-beto-bom.html
Blog de PEDRO ALEXANDRE SANCHES - Sérgio Ricardo:
http://pedroalexandresanches.blogspot.com/
Blog TABLÓIDE DIGITAL (Aramis Millarch) -A música de Sérgio Ricardo, um operário - artista em construção:
http://www.millarch.org/artigo/musica-de-sergio-ricardo-um-operario-artista-em-construcao
Blog TABLÓIDE DIGITAL (Aramis Millarch) - Sérgio Ricardo, agora pintor, quer mostrar suas telas aqui:
http://www.millarch.org/artigo/sergio-ricardo-agora-pintor-quer-mostrar-suas-telas-aqui
Blog TABLÓIDE DIGITAL (Aramis Millarch) - Um senhor talento:
http://www.millarch.org/artigo/um-senhor-talento
Blog TABLÓIDE DIGITAL (Aramis Millarch) - Um cordel de Drummond com a música de Sérgio sobre o João e a Joana (1):
http://www.millarch.org/artigo/um-cordel-de-dummond-com-musica-de-sergio-sobre-o-joao-joana
Blog TABLÓIDE DIGITAL (Aramis Millarch) - Um cordel de Drummond com a música de Sérgio sobre o João e a Joana (2):
http://www.millarch.org/artigo/um-cordel-de-drummond-com-musica-de-sergio-sobre-o-joao-joana-0
Blog TABLÓIDE DIGITAL (Aramis Millarch) - O Som da Copa:
http://www.millarch.org/artigo/o-som-da-copa
Blog TABLÓIDE DIGITAL (Aramis Millarch) - Fábula de Sérgio sobre um elefante dorminhoco:
http://www.millarch.org/artigo/fabula-de-sergio-sobre-um-elefante-dorminhoco
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