quarta-feira, 15 de agosto de 2012

AVE FOLCLÓRICA SE INSTALA NA PRAÇA BARÃO DE ARARAS

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Além de ornitólogo amador e pessoa de ouvido refinado, versado nas vozes da natureza, sou velho frequentador da praça Barão de Araras como observador de aves, de modo que qualquer pássaro novo que aparecer ali e cantar dificilmente escapará à minha atenção. Foi o que (novamente) aconteceu no sábado passado de manhã, dia 11.

Pois bem. Saindo de algumas compras na loja Seller, tão logo adentrei a praça, ouvi quatro assovios fortes e vibrantes, e disse para mim mesmo: “Tem ave nova na praça, e deve aquela tal ave folclórica!” Como quase sempre ando com uma máquina fotográfica à tiracolo, tentei localizar a ave no altos de um pé de Sibipiruna, mas nada de encontrá-la!... De repente, a ave parou de cantar e lamentei: “Mas onde esta bendita foi parar?!”
Parti frustrado, e quando já ia atravessando a praça do outro lado, eis que ela volta a cantar! Peguei a máquina e voltei à sua procura. Nisto, pude vê-la lá no alto das folhagens, e notei que parecia ser mesmo a ave que eu desconfiava – e vale dizer que eu já estava à espera dela na praça há tempos! Explico. Há cerca de 4 meses, estive em São Paulo, e em pleno centro da Praça da Sé, pude ver incrédulo esta avezinha cantando à pleno pulmões, isto como se estivesse à vontade em plena Serra do Mar! A tal avezinha era, nada mais nada menos, que a popular Jugovira, que quem mora na zona rural de Araras muito bem conhece, ou pelo menos a ouviu, que é ave impossível de não ser notada por seu canto. Me refiro ao Cyclarhis gujanensis, ave que por certas características suas tornou-se folclórica em todo o país. Quando fiz, em 1992 (abaixo), um levantamento das aves que frequentavam a cidade, desde a periferia até a zona central, ela ainda não era vista na praça Barão, e eis que, finalmente, exatas duas décadas depois, parece a Jugovira veio para ficar! Sorte nossa!



O que aconteceu à este pássaro, a ciência dá o nome de Sinantropia, ou seja, o fenômeno pelo qual um animal selvagem adapta-se ao meio urbano, lembrando-se que outras aves já passaram por isso, inclusive na praça Barão, como se deu em janeiro do ano passado, envolvendo o pássaro Ararapaçú-do-cerrado (Lepidocolaptes angustirostris), que já foi visto procriando nas praças centrais da cidade, inclusive, tendo ele um canto que chama muito a atenção, pois consiste de uma espécie de gargalhada descendente diferente de tudo o que e ouve na cidade. O que mais intriga neste fenômeno da sinantropia, é notar que, por algum motivo, motivo este que imagino ainda não desvendado, diversas aves invadiram as zonas urbanas de cidades muito distantes uma das outras, e isto, todas num mesmo lapso de tempo! Inclusive, aves de ambientes aquáticos, e arredias aí, passaram a ser vistas em movimentadas zonas centrais de cidades e em lugares onde nem mesmo há água our refúgio semelhante disponível!

Pouco maior que um pardal, a Jugovira é, no entanto, ave difícil de se ver, mas é facilmente reconhecível, pois tem o corpo verde-oliva claro, os olhos em tons que vão do amarelo ao vermelho, cabeça grande e bico grosso lembrando um pouco um bico de papagaio mais comprido.

Na época de reprodução, quem tem habilidades para imitar pássaros – como este que voz escreve – facilmente poderá atraí-la, ou pelo menos atrair as aves mais novas que não têm tanta malícia. Dois exemplares foram vistos – e podem ser um casal –, indício de que podem vir a procriar na praça este ano mesmo (de julho e novembro) e aumentar sua população, se espalhando assim para outras praças, como a da Biblioteca, do Tiro de Guerra e o Lago Municipal, onde, à esta altura, com certeza já frequenta. O naturalista Eurico Santos escreveu: “O casal vive numa harmonia perfeita e parece que deveras se amam muito. Quando um bárbaro caçador abate um dos consortes, o outro facilmente pode também ser sacrificado, porque não se afasta do local onde caiu o companheiro, procurando-o, chamando-o, numa evidente ansiosidade.” E é interessante observar o casal a se chamar mutuamente por horas à fio, enquanto se alimentam pelo arvoredo. Também ocorrem duelos de machos que vocalizam intensamente quando um se aproxima do território de outro. Abaixo, filagem da Jugovira num pé de Sibipiruna na praça Barão de Araras.



Existe desde o México, indo até a Argentina, onde o povo diz que ela canta: “Don Libório, Don Libório”, ou “Caballero, Caballero”, ou ainda ou ainda “Juan Chiviro”, nomes que remetem à sonoridade de seu canto, fato que também ocorre em nosso país. Constataram que a fêmea tem seu próprio canto e o macho apresenta oito cantos diferentes, por isto, a ave recebe um batismo diferente em cada região, como: “Tem-cachaça-aí” (Espírito Santo) ou “Pitiguari” (Pernambuco). O ornitólogo Dalgas Frisch escreveu que há pessoas que (pasmen) interpretam seu canto como “A chocolateira quebrou!”... O nome se refere ao antigo utensílio usado pelos tropeiros para fazer chá ou café. Outro nome, muito comum desde a Bahia, é Gente-de-fora-vem, e isto devido à uma particularidade sua, que, dizem, é a de cantar toda vez que vê um ser humano se aproximando do sítio, fazenda ou mata onde ele se encontra. A mesma reação se dá com anuns, quero-queros, pica-paus-do-campo e corujas-buraqueira, aves que tem aguçado senso de posse de território, e se mantém em contante alerta, dando alarme mal pressintam ameaça. Eurico Santos confirma o fato e diz que: “Na Paraíba do Norte crêem que, quando canta o Pitiguari, é certo que vai parecer visita ou, ao menos, uma boa notícia.” O folclorista Câmara Cascudo registrou outros nomes que remetem à mesma crença: “Olha o caminho, que vem gente” (Pernambuco), “Olha pro caminho, que já vem” (R. G. do Norte). Cascudo diz ainda que, em outros tempos, a ave avisava também de visitas sorrateiras em fazendas de homens tentando raptar donzelas!...
  
Sua fama levou a ser homenageada na música “Meu Pitiguari”, da dupla André & Mazinho, e também pelo violonista mineiro Tavinho Moura em “Gente-de-fora-vem” (da trilha sonora do filme “Noites do Sertão”). Curiosamente, “Meu Pitiguari” é o nome de uma companhia de danças de Santa Catarina, e “Gente-de-fora-vem” o de um grupo de teatro baiano.
  
Naquela vez em São Paulo, lembro-me que pensei comigo: “Mas, caramba, se a Jugovira existe no centro dessa loucura que é a paulicéia, porque não ocorre lá na calma praça Barão de Araras?! Daí, imagine-se naquele sábado a minha alegria ao encontrá-la finalmente frequentando a nossa velha praça! E, pensando bem, vai ser ótimo vê-la fixar-se ali, pois é ave que canta todos os meses do ano, tem repertório diversificado e volume muito alto de voz, tanto o é que naquele dia flagrei diversas pessoas na praça tentando ver quem fazia aquela cantoria toda. E isso enriquece muito a nossa praça: novos animais, novas vozes! Portanto, daqui para diante, se você estiver na praça Barão e gostar de observar os pássaros ali existentes, não precisará se esforçar muito para notar um canto alto e vibrante no alto das árvores, diferente de tudo que se está acostumado a ouvir pela cidade, e poderá conhecer então a lendária Jugovira, que provavelmente, ao te ver por ali, vai cantar dizendo “gente-de-fora-vem, gente-de-fora-vem!”...

Mas, enfim, é bom ver o Jugovira dividindo a cidade conosco? Sim e não. Do lado bom, desnecessário dizer. Do ruim, quase todos os seus antecedentes poéticos cairão por terra, e os seu histórico folclórico se anula na cidade: o seu canto misterioso se dilui em meio aos ruídos urbanos, e poucos ouvirão e entenderão os seus apelos “gente-de-fora-vem, gente-de-fora-vem!”, “gente-de-fora-vem, gente-de-fora-vem!”...

Jugovira, desde já, seja bem-vinda à nossa secular praça Barão de Araras, e que você procrie e cante muito aí!!!

Veja aqui outra ave folcórica que passou a frequentar a praça Barão em 2003, a belíssima Lavadeira!


PARA SABER MAIS:
Textos e fotos:
http://www.wikiaves.com.br/pitiguari
Ouça e memorize seus cantos:
http://www.xeno-canto.org/browse.php?query=cyclarhis+gujanensis

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPUZ DO MITO SACI E O BARRETE USADO PELOS NEGROS ESCRAVOS DO BRASIL


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"Seu boné vermelho é mágico: aí reside o seu 'encanto', seu poder, sua capacidade excepcional para travessuras; apoderar-se do boné do 'capetinha' é dominá-lo. Pois bem: essa carapuça vermelha corresponde ao píleo usado, em Roma antiga, por escravos libertos, como símbolo de sua emancipação; e é irmão do barrete frígio vermelho usado pelos franceses após a queda da Bastilha, em 1879, simbolizando as recém-conquistadas liberdades democráticas. Mas o Saci não veio da Europa; deve ter surgido no Brasil (no sul-sudeste?) por volta do final do século XVIII, uma vez que não consta nenhuma citação a seu respeito, em escritos de sacerdotes, cronistas e viajantes dos dois primeiros séculos. Perece ter, na origem, alguma aproximação com o Curupira e com a ave chamada saci, também ligado às circunstâncias sociais da escravidão (como no caso do Negrinho do Pastoreio)"

Fonte: PELEGRINI FILHO, Américo. Literatura folclórica. Edit. Nova Stella - USP. São Paulo, 1986, págs. 43-44.

A pintura, de 1827, é do explorador Charles Landseer, um então jovem artista inglês em início de carreira, que foi enviado ao Brasil em 1825, integrando uma importante missão diplomática britânica. Notar o capuz vermelho do escravo junto ao pilar!

A associação da pintura ao texto do Pelegrini é minha, e quero insinuar que, realmente, a pintura pode validar a opinião do pesquisador, a de que o Saci é mito genuinamente nacional, e talvez surgido nesta mesma época!